O amada amante de Lula e o exemplo de Odorico Paraguaçu
Lula, a exemplo do que cometeu na parte improvisada do discurso do último dia 8, confunde palanque oficial com mesa de bar, com roda de amigos, e solta impropriedades como a história de homens serem mais apaixonados por amantes do que por suas mulheres.
A exemplo de tantos outros líderes políticos reconhecidos por sua boa oratória, o presidente Lula adora falar. Sagaz, ele volta e meia surpreende a plateia com boas sacadas vindas de sua capacidade original de ler a realidade e de traduzi-la de maneira inteligível e, muitas vezes, engraçada.
O problema é que boca aberta é caminho de entrada de moscas. E, apaixonado pelo personagem Lula, o presidente, na ânsia de seduzir a audiência, abre alas para o Luiz Inácio, um sujeito não acostumado aos novos e necessários cuidados com o que se diz.
Nessas horas, Lula, a exemplo do que cometeu na parte improvisada do discurso do último dia 8, confunde palanque oficial com mesa de bar e solta impropriedades como a história de homens serem mais apaixonados por amantes do que por suas mulheres.
O comentário é duplamente equivocado. Primeiro, por normalizar algo que é excepcional, a existência de uma terceira pessoa numa relação que deveria ser vivida por duas pessoas. Segundo, pelo viés machista: na cabeça presidencial, o suposto direito de pular a cerca é privilégio de homens.
Na campanha de 2022, Lula fez pior. Ao falar da violência masculina contra parceiras, disse que isso não era admissível no Brasil, que quem quisesse bater em mulher deveria fazê-lo em outro lugar. Por sorte, não criou um problema diplomático, evitou citar países em que a prática poderia ser exercitada.
Neste terceiro mandato, o presidente condendou a escravidão, mas ressalvou que a prática gerou uma "coisa boa", a miscigenação; disse que pessoas com deficiência mental têm "problemas de desequilíbrio de parafuso". Não dá, presidente.
É possível argumentar que o antecessor de Lula, Jair Bolsonaro, é insuperável na capacidade de falar impropriedades. O ex-capitão já disse que uma deputada não merecia ser estuprada, que alguns negros deveriam ter seu peso medido em arrobas, relatou que havia pintado "um clima" entre ele e adolescentes venezuelanas — insinuou que elas se prostituíam. Ainda deu a entender que a vacida contra covid transformaria héteros em homossexuais.
A questão, porém, é que, no caso de Bolsonaro, as falas correspondem ao que a maioria de seus eleitores quer ouvir. Ele não foi eleito presidente em 2018 apesar de suas posturas preconceituosas ou mesmo favoráveis à tortura e à ditadura. Acabou vencedor justamente por falar o que muitos tinham vontade de dizer. Ao longo de seu mandato, fez questão de pronunciar frases que negavam pontos básicos da civilização.
Lula sabe que não pode ser assim. Como qualquer pessoa que tenha mais de 50 anos, ele foi criado numa sociedade ainda mais machista e preconceituosa. Ouviu — como ouvi — piadas que desqualificavam mulheres, gays, negros, judeus, nordestinos. Humilhar quem já é destratado no cotidiano não tem graça, apenas reforça a covardia.
O presidente precisa entender que precisa ter cuidado com o que fala. Nem sempre é fácil nos adaptarmos ao que grupos específicos determinam ser correto, há casos que parecem não fazer sentido. Mas quem apanha tem o direito de exigir uma linguagem que não lhe seja agressiva.
Os costumes mudaram, há 20 anos que adultério deixou de ser crime. Mas o ato definido como traição gera dor, infelicidade, abala muitas vidas. Não pode ser banalizado, tratado como piada, ainda mais com uma conotação machista.
Na dúvida, presidente, melhor ficar calado. O discurso lido na terça-feira foi muito bom, seus autores tiveram a ótima sacada de usar como mote o título do filme "Ainda estou aqui", algo particularmente feliz dias depois do prêmio da Fernanda Torres. Mas, se insistir em improvisar, faça como Odorico Paraguaçu, personagem de Dias Gomes: prepare seu improviso: de preferência, leve-o por escrito.