A cena que emociona — e que ressalta a injustiça

Ao não fornecer condições para que alunos pobres tenham condições de seguir na vida universitária, o Estado tira com uma mão o que entregara com a outra, busca assim restaurar a ordem perversa que marca nossa história.

Por Fernando Molica

Eline e sua filha Ana Beatriz, que passou para medicina na UERJ

A cena em que a estudante Ana Beatriz Bezerra conta para a mãe, vendedora de lanches, que passara no vestibular para medicina é linda e emocionante, mas ressalta também o tamanho da injustiça entre nós: ainda é uma exceção que uma jovem pobre e negra consiga entrar numa universidade pública num curso tão disputado. 

Mesmo entre famílias brancas e abonadas, a entrada de um filho numa universidade de elite, ainda mais em carreiras como medicina ou engenharia, é algo digno de comemoração e de reconhecimento. Mas se trata de algo mais previsível num país construído para garantir a exclusão.

Ana Beatriz será aluna da  UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), pioneira na adoção de cotas raciais e sociais, aprovado há 25 anos. Uma medida que, na época, foi combatida por muita gente, que nela enxergava uma violação de princípios relacionados ao mérito individual, como se fosse possível considerar justa uma disputa entre desiguais. Em 2009, o DEM, partido hoje integrado ao União Brasil, recorreu ao Supremo Tribunal Federal contra o sistema de cotas — perdeu a ação.

A decisão de destinar vagas à parcela mais discriminada da população foi um avanço importante, mas não resolveu de todo o problema. Cursar uma universidade requer dinheiro para passagens e alimentação e disponibilidade de tempo, não dá para cursar faculdades de tempo integral, como medicina, e trabalhar.

Ao não fornecer condições para que alunos pobres tenham condições de seguir na vida universitária, o Estado tira com uma mão o que entregara com a outra, restaura assim a ordem perversa que marca nossa história. O resultado é que, até hoje, brancos são a grande maioria nas cerimônias de formatura de carreiras mais tradicionais. A Uerj foi recentemente palco de uma disputa que envolvia o fim de benefícios a estudantes que não conseguiam se manter sem uma ajuda complementar.

O Brasil é independente há quase 203 anos, a Abolição fará 137 anos em maio. O país, uma das dez maiores economias do mundo, até hoje não conseguiu garantir educação pública de qualidade para toda a população. Isso, não por falha, mas por projeto: fomos criados para excluir e temos executado a tarefa com esmero.

Não basta apenas oferecer vagas para todos. Até para cobrir as mazelas trazidas pela miséria, falta de expectativas e de educação formal da maioria das famílias, a educação voltada para os mais pobres teria que ser melhor que a oferecida pelas mais conceituadas escolas particulares. É preciso tentar compensar o que Estado deixou de proporcionar ao longo de décadas.

Famílias de classe média para cima sabem que o futuro de seus filhos inclui, quase obrigatoriamente, a entrada numa faculdade. A expectativa é inversa entre os mais pobres. Neste outro universo, é até comum se dizer que a vida estudantil termina no Ensino Médio.

Como mostrou o caso de Ana Beatriz, entrar para uma universidade — ainda mais pública — é tido como uma exceção, algo reservado apenas para os melhores e mais esforçados. A crueldade é bem simples: pobres têm que ser excepcionais para conseguirem algo que chega a ser banal para os mais ricos.

Numa entrevista, Eliene, mãe da futura médica, revelou sua esperança de que a filha consiga ter uma vida diferente, que não precise empurrar carrinho com lanches pelas ruas da cidade. Que ela consiga escapar do destino traçado para tantas outras pessoas pobres e pretas.

Vou torcer muito por Ana Beatriz e por tantos outros jovens que ralaram para entrar numa universidade pública, todos — independentemente de cor e renda — são merecedores da conquista. Mas também sonho com um país em que a entrada de uma jovem negra e pobre numa faculdade de medicina seja algo banal e deixe de ser notícia.