Os baianos que nasceram na Argentina

Se os bonecos de Olga nos chamam para a dança nos salões, os desenhos de Carybé (1911-1997) nos levam para passear por Salvador. Para beber, comer, jogar capoeira, ajudar a puxar a rede dos pescadores.

Por Fernando Molica

Bonecos de Olga Gómez

Duas exposições que estão no Museu de Arte da Bahia, em Salvador, são uma espécie de prova incontestável dos benefícios da imigração e das trocas culturais. Os autores das obras — Carybé e Olga Gómez — nasceram na Argentina, mas são tão baianos quanto o trio elétrico.

Olga é uma artista plástica de 66 anos que foi parar em Salvador de férias e de lá não saiu mais. Especializada na criação de bonecos articulados, ela, como Geppetto de "Pinóquio", cria vida a partir da madeira.

São esculturas de diferentes tamanhos, de gestos e expressões marcantes, que demonstram alegria, tristeza, perplexidade, que exalam beleza.

Algumas, cabisbaixas, parecem carregar boa parte da dor humana; outras são leves como as bailarinas que remetem a pinturas e bronzes de Edgar Degas. São obras aos mesmo tempo simples e complexas.

Fundadora da companhia A Roda, de teatro de bonecos, Olga demonstra uma imensa capacidade de gerar movimento, de não nos deixar parados. Passear por sua exposição é como aceitar um convite para dançar.

A grande atração da mostra "Carybé e o povo da Bahia" são 227 desenhos originais em nanquim sobre papel feitos pelo artista, no início dos anos 1950, sob encomenda de Anísio Teixeira, então secretário de Educação e Saúde da Bahia.  

Se os bonecos de Olga nos chamam para a dança nos salões, os desenhos de Carybé (1911-1997) nos levam para passear por Salvador. Para beber, comer, jogar capoeira, conversar nas esquinas, ajudar a puxar a rede dos pescadores. 

O desenhista, pintor, escultor, ilustrador, pesquisador, historiador, jornalista, ceramista, ilustrador gravador, Obá de Xangô do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá é exuberante no uso de traços simples, objetivos, essenciais. Tudo num preto e branco que parece explodir em cores e movimentos. É como se houvesse uma quase contradição do tanto que faz com tão pouco.

Seus desenhos são como crônicas visuais da Bahia, no melhor sentido desse tipo de gênero literário. Não é algo que pretenda retratar, enquadrar e descrever de maneira minuciosa as gentes e as ruas. Como os melhores cronistas,  foca num determinado aspecto do que vê, como se isolasse aqueles personagens do conjunto. 

O que importa é destacar aquele jeito de dançar, a determinada expressão de um garotinho que caminha de mãos dadas com o pai numa festa de largo, a jovem que move os quadris ao andar — sim, elas se movem. Os quadros têm o perfume do dendê.

Os trabalhos de Olga e de Carybé exalam carinho pelo país, por sua gente. Demonstram integração e recriação de uma determinada realidade, apontam para a vida tão bela criada por pessoas geralmente tão pobres.

Não me supreenderia ao saber que, à noite, longe dos olhos do público, bonecos e personagens conversam, cantam músicas de Dorival Caymmi, falam de livros de Jorge Amado, de histórias de mares e sertões.