Por: Fernando Molica

Palavras que não traduzem mais a dor

Thiago Marques Gonçalves, piloto da moto que transportava Carvalho, é libertado após audiência de custódia. | Foto: Alerj

Vivo das palavras há mais de 40 anos, tenho profundo carinho e respeito por essas combinações de letras que dão sentido ao mundo. Mas diante de episódios como o do jornalista Igor Melo de Carvalho, baleado pelas costas, há a sensação de que não há como expressar tanta revolta, indignação, raiva e dor.

É tamanha a repetição de fatos que reafirmam racismo, exclusão e violência policial que fica difícil encontrar palavras e frases originais; todas parecem redundantes, gastas pela indiferença, pelo preconceito, pela banalização do mal, como definiu Hannah Arendt.

Fica uma sensação de vazio ao, mais vez, discorrer sobre discriminação em relação aos pobres e negros. Dá para falar no corpo preto sempre alvo de balas que quase nunca se perdem, que há séculos seguem a mesma trajetória — mas quantas vezes você não leu frases parecidas?

É inevitável falar no oportunismo assassino de políticos que, de carona no legítimo medo da população em relação à criminalidade, repetem os discursos que servem apenas para reiterar o ataque aos suspeitos de sempre.

Homens e mulheres que alimentam o ódio, que insistem em práticas capazes apenas de produzir mais cadáveres. Eles sabem que o controle da violência — aqui, no Oriente Médio, na Ucrânia, em qualquer lugar — interromperia os lucros de muita gente que vive da guerra. O Estado é, ao mesmo tempo, sócio e refém dos que ganham muito dinheiro com a insegurança nossa de cada dia.

Releio o que acabei de escrever com a desconfiança de ter apenas copiado artigos anteriores, de ter feito um autoplágio, de insistir num samba trágico de uma nota só. Sensação também de ter plagiado outros autores que insistem em variações dos mesmos pontos.

Uma lei aprovada pelo Congresso em 2014 é evidente ao determinar que policiais não podem atirar contra pessoa "que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos agentes de segurança pública ou a terceiros".

Uma lei que, se tivesse sido respeitada, evitaria que o PM reformado Carlos Alberto de Jesus, autor da tentativa de homicídio, atirasse em Carvalho, que, na garupa de uma moto de aplicativo, voltava para casa após fazer bico de garçom. O jornalista e o piloto ainda foram presos, acusados pelo PM de terem furtado o celular de sua mulher — seus colegas da ativa acreditaram nele. 

Não é possível argumentar quando não há quem queira ouvir. Há até os que fingem escutar, que falam em investigações, em punições, nisso e naquilo. Mas eles sabem que muito pouco será feito, que o país foi construído para garantir o direito ao abuso. A defesa da sociedade tão citada por governantes existe, mas para apenas uma parcela da população.

O Superior Tribunal Militar reduziu penas de oito militares do Exército que mataram o músico Evaldo Rosa dos Santos e o catador Luciano Macedo — e, até agora, ficou nisso. Como resumiu o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos): "O pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí". Ele sabe que não está na mira dos agentes do Estado.

Mas não podemos desistir das palavras, são elas que viabilizam nosso pensamento, que exprimem nossas alegrias e dores. De maneira até contraditória em relação ao primeiro parágrafo deste texto, não nos é permitido dizer que não temos palavras — até porque pouco nos sobraria sem elas.

É preciso, talvez, inventar palavras-gestos, que inspirem e pressionem, que apontem para uma responsabilidade que vá muito além de quem aperta o gatilho. Como no exemplo dos jovens que foram para a frente da casa do general José Antônio Nogueira Belham — um dos responsáveis pela morte de Rubens Paiva —, é preciso escrachar nossas frases comedidas e bem-comportadas que não correspondem mais à barbárie.