Por: Fernando Molica

O enredo da camarotização do Sambódromo

Camarotes ocupam cada vez mais espaços no Sambódromo | Foto: Fernando Maia/Riotur

A diminuição radical das frisas no Sambódromo poderia até virar enredo: "De abóbora a carruagem, a geral virou lounge de camarote". Foto publicada na capa da edição de ontem de O Globo comprova como, ao longo dos últimos anos, a Liesa, organizadora dos desfiles do Grupo Especial, ampliou os espaços mais caros da Marquês de Sapucaí em detrimento dos hoje restritos cercadinhos para seis pessoas.

O engraçado é que, derramados às margens da pista, abarrotados, os tais lounges oferecem uma péssima visão do desfile. Na inauguração do Sambódromo, em 1984, esses espaços, nos setores 3 e 5, foram dedicados à geral, onde o público assistia de pé às apresentações. 

Em 19 de fevereiro daquele ano, reportagem do mesmo O Globo frisava que a pouca inclinação do espaço — 30 centímetros entre as partes alta e baixa — prejudicaria a visão de quem não estivesse na primeira fila. Os dois setores podiam, juntos, receber 15.056 foliões. 

Em 1984, quem encarou a maratona de pé pagou, pelos valores de hoje, cerca de R$ 59,00 (Cr$ 4 mil na época); em 2025, ficar por ali, também de pé, custa em torno de R$ 3,8 mil — o valor inclui comida e bebidas e permite disputar cadeiras e poltronas na parte fechada dos camarotes. Mas a visão da pista é a mesma.

A geral — pensada por Darcy Ribeiro, então vice-governador — tinha um problema grave: ninguém aguentaria ficar tanto tempo de pé. Como outros equívocos de Oscar Niemeyer no projeto do Sambódromo, o setor acabou eliminado, teve o mesmo destino dos inacreditáveis vãos entre as arquibancadas.

Ainda em 1984, outros espaços sob as arquibancadas — nos setores 4, 7, 9 e 11 — abrigaram cadeiras de pista. O problema da pouca inclinação era o mesmo, mas a quantidade de público era muito menor nesses locais — entre 720 e mil pessoas em cada um, o que permitia uma visão mais razoável do desfile. Nesses locais, o ingresso mais barato ficava, em valores de hoje, em torno de R$ 730,00.

Depois vieram as frisas. Dispostas em quatro filas, representaram uma solução para preencher aqueles espaços. Não oferecem as mordomias dos camarotes, mas são bem mais confortáveis que as arquibancadas e deixam os espectadores ao lado das escolas.

Os ingressos também são caros, mas serviam de alternativa: para este ano, as que sobraram da fúria camarotizante custaram entre R$ 1.250,00 por pessoa na fila A e R$ 834,00 nas demais (este, valor bem próximo do cobrado pela cadeira de pista há 41 anos). 

Criadoras e senhoras do maior e mais deslumbrante de todos os espetáculos, as escolas de samba têm o direito de definir condições do palco e da plateia. Mas é preciso levar em conta que o espaço, o Sambódromo, é público e os desfiles são subsidiados pela prefeitura e, em menor escala, pelo estado: são investimentos importantes para a cultura e para a economia do Rio.

A criação dos lounges multiplicou a capacidade dos camarotes, antes limitados a espaços bem menores, ampliou a arrecadação de empresários, da Liesa, e, consequentemente, das escolas. Mas contribuiu para diminuir o espaço no Sambódromo de pessoas que amam o ritual e ampliou a presença daqueles que, uniformizados com as cores de seus privilégios, sequer reclamam de uma visibilidade ruim da pista — olham mais para as apresentações que acontecem no interior daqueles lugares reservados e caros. Uma barulheira que com frequência vaza para fora daqueles espaços.

A camarotização do Sambódromo atenta contra a própria história da festa, arranha um legado tão presente que faz com que centenas de milhares de pessoas se desloquem até o Centro para acompanhar os ensaios técnicos. Gente incapaz de ficar de costas para a pista e que se vê naquela procissão.