O enredo da camarotização do Sambódromo
O mais engraçado é que os tais lounges, como são chamados os puxadinhos dos camarotes que ficam no nível da pista, oferecem uma visão muito ruim do desfile. Na inauguração do Sambódromo, em 1984, esses espaços, nos setores 3 e 5, foram dedicados à extinta geral, local onde o público assistiria de pé aos desfiles.

A diminuição radical das frisas no Sambódromo poderia até virar enredo: "De abóbora a carruagem, a geral virou lounge de camarote". Foto publicada na capa da edição de ontem de O Globo comprova como, ao longo dos últimos anos, a Liesa, organizadora dos desfiles do Grupo Especial, ampliou os espaços mais caros da Marquês de Sapucaí em detrimento dos hoje restritos cercadinhos para seis pessoas.
O engraçado é que, derramados às margens da pista, abarrotados, os tais lounges oferecem uma péssima visão do desfile. Na inauguração do Sambódromo, em 1984, esses espaços, nos setores 3 e 5, foram dedicados à geral, onde o público assistia de pé às apresentações.
Em 19 de fevereiro daquele ano, reportagem do mesmo O Globo frisava que a pouca inclinação do espaço — 30 centímetros entre as partes alta e baixa — prejudicaria a visão de quem não estivesse na primeira fila. Os dois setores podiam, juntos, receber 15.056 foliões.
Em 1984, quem encarou a maratona de pé pagou, pelos valores de hoje, cerca de R$ 59,00 (Cr$ 4 mil na época); em 2025, ficar por ali, também de pé, custa em torno de R$ 3,8 mil — o valor inclui comida e bebidas e permite disputar cadeiras e poltronas na parte fechada dos camarotes. Mas a visão da pista é a mesma.
A geral — pensada por Darcy Ribeiro, então vice-governador — tinha um problema grave: ninguém aguentaria ficar tanto tempo de pé. Como outros equívocos de Oscar Niemeyer no projeto do Sambódromo, o setor acabou eliminado, teve o mesmo destino dos inacreditáveis vãos entre as arquibancadas.
Ainda em 1984, outros espaços sob as arquibancadas — nos setores 4, 7, 9 e 11 — abrigaram cadeiras de pista. O problema da pouca inclinação era o mesmo, mas a quantidade de público era muito menor nesses locais — entre 720 e mil pessoas em cada um, o que permitia uma visão mais razoável do desfile. Nesses locais, o ingresso mais barato ficava, em valores de hoje, em torno de R$ 730,00.
Depois vieram as frisas. Dispostas em quatro filas, representaram uma solução para preencher aqueles espaços. Não oferecem as mordomias dos camarotes, mas são bem mais confortáveis que as arquibancadas e deixam os espectadores ao lado das escolas.
Os ingressos também são caros, mas serviam de alternativa: para este ano, as que sobraram da fúria camarotizante custaram entre R$ 1.250,00 por pessoa na fila A e R$ 834,00 nas demais (este, valor bem próximo do cobrado pela cadeira de pista há 41 anos).
Criadoras e senhoras do maior e mais deslumbrante de todos os espetáculos, as escolas de samba têm o direito de definir condições do palco e da plateia. Mas é preciso levar em conta que o espaço, o Sambódromo, é público e os desfiles são subsidiados pela prefeitura e, em menor escala, pelo estado: são investimentos importantes para a cultura e para a economia do Rio.
A criação dos lounges multiplicou a capacidade dos camarotes, antes limitados a espaços bem menores, ampliou a arrecadação de empresários, da Liesa, e, consequentemente, das escolas. Mas contribuiu para diminuir o espaço no Sambódromo de pessoas que amam o ritual e ampliou a presença daqueles que, uniformizados com as cores de seus privilégios, sequer reclamam de uma visibilidade ruim da pista — olham mais para as apresentações que acontecem no interior daqueles lugares reservados e caros. Uma barulheira que com frequência vaza para fora daqueles espaços.
A camarotização do Sambódromo atenta contra a própria história da festa, arranha um legado tão presente que faz com que centenas de milhares de pessoas se desloquem até o Centro para acompanhar os ensaios técnicos. Gente incapaz de ficar de costas para a pista e que se vê naquela procissão.