Por: Fernando Molica

Os fios do tricô de Dona História sempre estarão por aqui

'Ainda Estou Aqui' concorre a melhor filme | Foto: Adrian Tejido/Divulgação

Irônica, sagaz e sem pressa, Dona História está feliz com o sucesso de "Ainda estamos aqui", de Walter Salles Junior, que ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional. Um prêmio que sabota a proposta de anistia para golpistas e, ao mesmo tempo, reforça a busca pela revisão do perdão concedido em 1979 para autores de crimes permanentes, como o desaparecimento do corpo do ex-deputado Rubens Paiva. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, chegam a 210 os casos semelhantes ao do ex-parlamentar.

No mês passado, o Supremo Tribunal Federal definiu, por unanimidade, que tem o direito de analisar se a Lei de Anistia assinada pelo general João Baptista Figueiredo, então presidente da República, pode beneficiar responsáveis por crimes que permanecem em aberto, como o desaparecimento de pessoas. Como esses corpos jamais foram encontrados, não poderiam ser considerados prescritos. A ocultação de cadáver, como frisou o ministro Flávio Dino, é algo que se prolonga no tempo.

Elemento fundamental no processo de abertura, a anistia de 1979 beneficiou os que cometeram "crimes políticos ou conexo com estes". Pilatos no credo do texto legal, a palavra "conexo" foi introduzida para garantir a impunidade de torturadores e assassinos, que praticaram seus atos a serviço de um governo imposto por um golpe.

Na época, muita gente reclamou do que chamava de "anistia recíproca" — numa ditadura, há uma diferença básica entre quem combate o arbítrio e os que dele se beneficiam. Mas foi o que deu para aprovar: militares impuseram também que a lei não beneficiasse "condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal". Um processo de revisão de penas, porém, garantiu que mesmos estes pudessem voltar ao Brasil ou serem libertados.

Diferentemente de outras anistias, a de 1979 não foi concedida por um governo democrático posterior ao ditatorial, mas pelos próprios responsáveis pelo regime autoritário. Como sabiam da impossibilidade de manutenção do que havia sido implantado em 1964, trataram de negociar a transição e de garantir a própria impunidade. 

Com medo de a corda que tanto usaram para matar viesse a ser alojada em seus próprios pescoços, os egressos do mais sujo dos trabalhos cometidos pela ditadura continuaram a mostrar as garras mesmo depois da anistia. Cometeram atentados a bancas de jornais, à Ordem dos Advogados do Brasil e por pouco não provocaram uma tragédia de proporções assustadadoras no Riocentro.

Países como a Argentina e o Uruguai trataram de julgar e punir militares que cometeram crimes contra a humanidade; ao optar pela conciliação, o Brasil deixou abertas as portas dos porões e estimulou aventuras como a tentativa golpista conduzida a partir de 2021. Dona História não gostou nada do que viu no 8 de Janbeiro, balançou a cabeça, mas voltou ao tricô.

"Ainda estou aqui" foi criticado por uns mais radicais, que reclamaram da ausência, no filme, de detalhes da tortura. Mas a sutileza é um dos grandes méritos do longa-metragem — ao ser delicado, ressalta o tamanho do arbítrio e convoca para a necessidade de um acerto de contas. Os responsáveis pelo sequestro, tortura, morte e desaparecimento de Rubens Paiva precisam ser punidos; pelo menos dois deles estão vivos. O crime que cometeram continua em aberto, o corpo do ex-deputado não foi encontrado.

O filme também ressalta a necessidade de investigar, julgar e punir aqueles que, recentemente, tentaram ressuscitar a ditadura. Eles sabiam o que faziam ao fazer o que fizeram. Dizem que, depois do discurso de Salles, Dona História deixou o tricô de lado, desligou a TV e foi tomar um chá — depois, retomou o trabalho com as agulhas, sabe que nunca vai deixar de entrelaçar seus fios.