Por: Fernando Molica

A extinção do leite das onças

Pressionadas talvez pelos desmatamentos, incêndios florestais e passagem das boiadas, as mamães-onças parecem ter reduzido de forma drástica a produção de seu leite, outrora presença marcante e infalível em festas suburbanas.

A busca de um presente para um amigo cinco estrelas fez com que, há alguns dias,  eu empreendesse uma caçada virtual a uma garrafa de leite de onça — saí pela internet em busca de pegadas que me levassem ao encontro de alguma reserva do produto num raio de, digamos, dez quilômetros a partir da minha casa.

A busca da batida perfeita foi inútil. Pra piorar, ainda ouvi de uma fabricante de uma versão moderna desse tipo de bebida uma variante da pergunta tão ouvida por paleontólogos sobre um determinado e desconhecido tipo de dinossauro: "Mas o que é 'leite de onça'?" 

A pergunta teve o impacto de asteroide que atravessasse a atmosfera de sábado e ameaçasse destruir a vida que ainda resiste nas memórias de antigas comemorações em Piedade. Recordações difusas nas quais pontificam garrafas transparentes, sem rótulos, coloridas por substâncias leitosas — uma levemente amarronzada, característica do leite de onça, e a cor-de-rosa, repleta de outra campeã dos balcões revestidos de fórmica azul, a calcinha de nylon.

A adição de groselha dava o tom róseo que garantia doses adicionais de doçura e fantasia àquela mistura de cachaça e leite condensado.

Eram tempos de restrições severas à importação de bebidas como uísque, então só disponível nas melhores casas do ramo e nas mãos dos piores contrabandistas.

O custo elevado de cada garrafa trazida do exterior favorecia a proliferação de versões brasileiras e paraguaias do destilado escocês e de gororobas líquidas como um negócio chamado licor de ovos. Este, uma espécie de subproduto da guerra suja deflagrada pela rataria química abrigada em laboratórios clandestinos nos porões da ditadura.

Em meio à carência, a batida servia de alternativa alcoólica à onipresente cerveja. A paleta de cores dos preparados e a presença abusiva de açúcar davam um certo ar infantil àquela bomba de cachaça: é docinha, ressaltavam os tiozões que permitiram até que crianças bicassem aquelas aparentemente inocentes misturas.

Diante da pergunta sobre o que seria leite de onça, vacilei. Na resposta, murmurei algo sobre a adição de leite de coco e cacau ou pó de chocolate à cachaça e ao leite condensado, fiquei por aí, tratei de encerrar a conversa. Intuí que uma fadinha de collant de oncinha e boca borrada de carmim morreria de tristeza em algum cabaré interiorano a cada questionamento sobre a existência de um drinque outrora tão popular.

Desisti do presente original, tratei de comprar garrafa de outro tipo de batida para presentear o amigo. No cartão anexado ao mimo, tratei do sumiço das onças e do seu leite e exaltei Ary Barroso — o coqueiro, alvíssaras, ainda dá coco.