O Rio foi palco, ontem, de duas grandes ações contra o crime: a da Polícia Federal mirou no atacado, num esquema acusado de traficar dois mil fuzis; a outra, da Polícia Civil, focou no varejo da repressão aos bandidos entocados em favelas e terminou com um policial gravemente ferido.
Até o início da noite, a PF não havia anunciado a prisão do principal suspeito de comandar a máquina que fornece tantas armas para a criminalidade fluminense, um ex-integrante da corporação chamado Josias João do Nascimento.
Mas só o fato de ter havido uma mobilização voltada para o combate a grandes esquemas é fundamental. Chega a ser um lugar comum repetir que o comando do crime que inferniza a vida de todos nós não está nas comunidades pobres, é preciso enfatizar alto tão verdadeiro e relevante.
Não dá pra imaginar que bandidos de baixa escolaridade, incapazes de sobreviverem fora de favelas, sejam capazes de tramar esquemas bilionários que envolvem fornecimento de drogas, armas e munição, um mecanismo pra lá de azeitado, é só ver como os caras mandam bala pra todo lado.
Nem mesmo esses traficantes que vivem em áreas pobres conseguem escapar do destino traçado pela desigualdade brasileira. Todos ficamos impressionados com o chamado resort construído por um desses bandidos, que comandaria uma facção inspirada em princípios evangélicos e que louva Israel (não vou tentar ousar explicar essa maluquice agora).
Mas por mais poderoso, cruel e endinheirado que seja o tal do Álvaro Malaquias Santa Rosa, o Peixão, dono da área de lazer, ele continua condenado a viver numa favela. Não pode sequer ousar botar o pé fora de uma dessas comunidades aliadas.
Sua presença num resort de verdade despertaria suspeitas imediatas, ele provavelmente teria dificuldades de se comportar num ambiente mais formal e sofisticado, não conseguiria preencher a ficha de hóspede, teria que pagar tudo à vista, cash - este tipo de bandido não tem cartão de crédito.
Já o Josias do Nascimento não deve ter qualquer problema em circular pelo mundo na hora de fazer seus negócios. O fato de ser um policial federal aposentado indica que ele teve uma boa formação, sabe lidar com bandidos de diferentes patamares, não ficará constrangido diante do cardápio de um restaurante um pouco mais sofisticado.
A insistência em combater apenas o banditismo que se expõe revela, no fundo, a não vontade de resolver o problema, mas de mantê-lo vivo, com o devido revezamento no posto de inimigo público número 1. Mais dia, menos dia, o tal do Peixão vai ser preso ou morto, e isso não vai mudar em nada o problema da segurança pública no Rio.
O caso do resort ficou ainda mais interessante depois que o jornal O Globo publicou que a estrutura de lazer ficou de pé 15 meses depois de descoberta porque dois políticos — um deputado estadual e um então vereador — pressionaram autoridades do Estado para que nada fosse demolido. O fato de eles terem pressionado é gravíssimo, mas é escandaloso que o lobby tenha sido admitido, e que todos os envolvidos na negociata não tenham sido presos.
Não haverá qualquer possibilidade de controle da violência enquanto apenas os sintomas forem priorizados. A impunidade dos lobistas do Peixão e de tantos outros que nadam por aí e as raras ocorrências de operações como a deflagrada ontem pela PF reforçam que o crime tem compensado, e muito.
Até porque, vale insistir, o modelo de combate focado no tocar terror em favelas mata quase exclusivamente pessoas pobres ou que ocupam cargos inferiores na máquina estatal, como policiais que atuam nas ruas.
Ontem, foi a vez do Felipe Marques Monteiro, de 45 anos, copiloto de um helicóptero da Polícia Civil, tomar uma bala na cabeça e ser levado em estado gravíssimo para um hospital. Hoje, no mais tardar amanhã, será a vez de algum morador de favela, inocente ou bandido, tanto faz.