A brutalidade que não pode ser comparada
É bom que o documento, assinado pelo então diretor da CIA, William Colby, esteja de novo por aí. Serve como um soco na cara dos que relativizam a ditadura, que tentam dizer que não foi bem assim, que incluem em suas frases a palavra "mas".

Voltou a circular por redes sociais um post de 2018 do professor Matias Spektor em que ele comenta seu espanto ao se deparar com um documento que classificou com o mais perturbador que descobrira em 20 anos de pesquisa. O relato em que a CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) revela que o então presidente Ernesto Geisel, aprovara, em 1974, a manutenção de assassinatos sumários de brasileiros.
É interessante que o documento volte a ser discutido em 2025, em meio à repercussão do filme "Ainda estou aqui" e à grita de bolsonaristas que pedem anistia para condenados e acusados pela tentativa golpista. Os que defendem o fim das punições e a paralisação das investigações tentam fazer um paralelo entre a situação dos presos pelo 8 de Janeiro com as vítimas da ditadura, como o ex-deputado Rubens Paiva.
É bom que o documento, assinado pelo então diretor da CIA, William Colby, esteja de novo por aí. Serve como um soco na cara dos que relativizam a ditadura, que tentam dizer que não foi bem assim, que incluem em suas frases a palavra "mas".
Não tem mas, mais ou menos. Como dizem os bicheiros, vale o escrito. Está lá consignado que, numa reunião entre quatro generais — Geisel, João Baptista Figueiredo (que viria a herdar o posto de presidente), Milton Tavares de Souza e Confúncio Danton de Paula Avelino —, o ditador de plantão autorizou a continuidade da matança levada a cabo pelo antecessor, general Emílio Garrastazu Médici. Segundo Colby, no encontro, Tavares, comandante do CIE (Centro de Informações do Exército) disse que, o governo anterior, o órgão executara "cerca de" 104 pessoas.
Geisel pediu um tempo para pensar e, dois dias depois, em 1º de abril, data que marcava os dez anos da vitória do golpe de 1964, disse algo na linha do tem que manter isso aí: a carnificina poderia continuar, desde que feita com cuidado — só os chamados subversivos perigosos poderiam ser mortos. Mas, antes, Figueiredo, ministro-chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), deveria ser consultado.
Foi um capítulo do que entraria para a história como processo de abertura política. Antes, havia uma espécie de carta branca — digamos, verde-oliva — para que brasileiros fossem torturados e mortos por determinação de funcionários públicos, em geral, fardados. Graças à distensão comandada por Geisel, era preciso ter um pouco mais de cuidado. Religioso, luterano, Geisel em fevereiro daquele mesmo ano, pouco antes de ser empossado, dissera em conversa com o também general Dale Coutinho que "esse troço de matar" era "uma barbaridade", mas que tinha que ser assim mesmo.
O arbítrio era tão absurdo que sequer respeitava o rito da pena de morte que passara a ser prevista por emenda constitucional imposta em 1969 (seria revogada apenas em 1978, poucos meses antes de Geisel deixar o trono). Admitida em casos de "de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva", a pena de morte teria que ser determinada pela Justiça Militar. Os militares, porém, preferiram a informalidade que, em tese, não deixaria suas digitais nos cadáveres.
Bolsonaristas têm o direito de reivindicar anistia, de tentar libertar aqueles que pediam intervenção — ou seja, golpe militar — que botaram pra quebrar, que agrediram até policiais. Podem pedir a liberdade de pessoas que ainda sequer foram condenadas, caso de Jair Bolsonaro, criticar o Supremo Tribunal Federal, reclamar de penas pesadas, recorrer à ONU, à Liga da Justiça, ao raio que os parta.
Mas não podem falar em ditadura do Judiciário — ditadura era o que muitos deles queriam implantar. Numa ditadura, eles não teriam direito a expor seus questionamentos, seus parentes não entrariam no Congresso Nacional reclamar de eventual injustiça. Numa ditadura, vários dos que respondem a processos ou estão presos teriam sido torturados e/ou mortos, muitos acabariam desaparecidos, e não estariam mais por aqui.