O fascismo da desmoralização do Parlamento

No fundamental livro "M - O filho do século" (Intrínseca), Antonio Scurati detalha o processo de ascensão dos camisas-negras, um encadeamento de fatos que incluiu casos repetidos de violência política e de desmoralização da representação popular.

Por Fernando Molica

Joédson Alves/Agência Brasil
Gleisi Hoffmann, ministra de Relações Institucionais

A inqualificável agressão verbal cometida pelo deputado bolsonarista Gustavo Gayer (PL-GO) vai muito além de um ataque à ministra Gleisi Hoffmann, faz parte de uma campanha de desqualificação do Parlamento como a promovida pelos fascistas italianos. A exemplos de tantos outros colegas, ele sabe muito bem o que faz e o que quer.

No ótimo livro "M — O filho do século" (Intrínseca), Antonio Scurati detalha o processo de ascensão dos camisas-negras, um encadeamento de fatos que incluiu casos repetidos de violência política e de desmoralização da representação popular. O Parlamento, transformado em palco de batalhas, deveria ser  humilhado, desprezado publicamente. 

Gayer usou uma frase infeliz e machista do presidente Lula para comparar a ministra a uma prostituta. Em rede social, questionou o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (PT), namorado de Gleisi: "Vai mesmo aceitar o seu chefe oferecer sua esposa para o Hugo Motta e Alcolumbre como um cafetão oferece uma GP??". GP é garota de programa.

Em seguida, complementou a provocação a Lindbergh: "Sua esposa sendo humilhada pelo seu chefe e vc vai ficar calado??" Depois, disse ter imaginado um trisal formado pela ministra, pelo líder do PT e por David Alcolumbre, presidente do Senado e do Congresso. 

O objetivo de Gayer vai muito além da busca de cliques. Sua fala tem o claro objetivo de gerar uma reação física de Lindbergh, algo como um soco no plenário. Uma briga capaz de gerar imagens escandalosas, capaz de reforçar a ideia de que o Parlamento não serve para nada, é apenas um local de reunião de vagabundos que não respeitam o país. Gayer superou outro bolsonarista, Nikolas Ferreira (PL-MG), que subiu de peruca loura no púlpito da Câmara.

Esse tipo de parlamentar não foi para o Congresso em defesa de princípios, de ideias, de propostas — mesmo as mais desvairadas. Eles foram para, de maneira calculada, destruírem as instituições. Com palavras e gestos, fazem o mesmo que as hordas golpistas na intentona de 8 de Janeiro, querem quebrar, aniquilar. Como seu ídolo maior, Jair Bolsonaro, trabalham na lógica do ódio, não da construção (o ex-presidente, pelo menos, há muitos anos admitiu suas intenções golpistas).

Deputados como Gayer e Nikolas negam o papel de representação e de intermediação que deve ser exercido pelo universo político, estimulam o linchamento, ampliam sentimentos de revolta presentes na população. É compreensível que muita gente odeie políticos e governantes, é raro o dia em que eles não dão motivos para algum tipo de insatisfação. O problema é quando esse sentimento é, de forma política e estruturada, canalizado para uma falsa ideia de negação da própria política. Estimular a raiva em relação à política é um atalho para o desprezo à democracia.

Scurati é preciso ao tratar do desalento da sociedade ao descrever o dia em que Mussolini recebeu plenos poderes do Parlamento: "Os italianos, em suma, estão enjoados de si mesmos. Quase todos, e também algumas de suas vítimas, desejam vida longa e uma 'saúde de ferro' ao homem da emergência para que ele expurgue a ferida infeccionada. A doença deve curar a si mesma".

Ano passado, numa articulação que também envolveu deputados petistas, a Câmara arquivou o questionamento à quebra de decoro por parte de Nikolas. Em 2016, deu o mesmo destino a uma investigação sobre a fala de Bolsonaro em que ele exaltava o coronel Brilhante Ustra, que abrilhantou sua carreira no Exército dando choques em vaginas e seios de presas, que chicoteava pessoas com cipó, que levou crianças para ver pais torturados.

Ao ignorar tais fatos, o Congresso Nacional estendeu o tapete para que os que, em 8 de Janeiro, invadiram e depredaram suas instalações — eles apenas completaram o serviço que já vinha sendo feito por deputados e senadores. A Câmara tem mais uma chance para dizer se é cúmplice da barbárie.