O Brasil mudou tanto nessas últimas décadas que não será surpresa se, ao final do remake de "Vale tudo", a vilã de carteirinha Maria de Fátima acabar anistiada pela opinião pública, vista como exemplo de lutadora, de empreendedora, de pessoa capaz de romper barreiras impostas pela sociedade. Periga terminar a novela como dona de um desses cursos que, como os do Pablo Marçal, dizem ensinar os caminhos da prosperidade.
Interpretada agora por Bella Campos, Maria de Fátima até aqui tem reproduzido a trajetória da personagem em sua primeira versão, quando foi levada à tela por Glória Pires. Já chegou chegando, deu uma rasteira na mãe ao vender a única propriedade da família. Como diz o coach que quase foi pro segundo turno na eleição para prefeito de São Paulo, "você não tem culpa de não ter vindo de uma família rica, mas tem culpa se uma família rica não vier de você".
Na história levada ao ar entre 1988 e 1989, a jovem pilantra passou por alguns perrengues, mas terminou se dando bem, conseguiu um casamento de fachada com um príncipe italiano gay. Sua mãe, Raquel (antes, Regina Duarte; hoje, Taís Araujo), ficou milionária, mas graças ao esforço, a um trabalho incansável (ironia: a fictícia rede de restaurantes Paladar, que enriqueceu Raquel, inspirou a criação de pensões caseiras em Cuba, onde a novela também foi exibida. Esses pequenos restaurantes passaram a ser chamados de "paladares").
Na época da primeira "Vale tudo" (escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères), o Brasil se preparava para a primeira eleição direta para presidente depois da ditadura, o tema da corrupção dominava conversas, despertava indignação. A banana que Marco Aurélio (Reginaldo Faria; hoje, Alexandre Nero) deu para o país no último capítulo foi vista como agressão e ironia, não como modelo a ser seguido. Hoje, sei não.
Em 2025, esse negócio de ralar, ralar, ralar ficou meio fora de moda. A riqueza, dizem coachs, influenciadores e tantos pastores neopentecostais, está ali na esquina, esperando pelos mais ousados e determinados, não pelos que optam pela construção de uma carreira. Às vezes é preciso avançar uns sinais, mas quem é que não faz isso, né? A Prosperidade passou de teologia para ideologia.
As últimas décadas mostraram que brasileiros são adeptos de uma indignação seletiva, escolhem quem pode e quem não pode roubar. A tolerância com políticos que são conservadores apenas na manutenção da prática de saque histórico aos cofres públicos revela que o país resiste a ladrões novos; o direito à pilhagem do Estado deve ser hereditário, com as antigas capitanias — é fundamental defender a própria família.
Nesse contexto, o melhor é dar um jeito de entrar para o clube dos privilegiados, mesmo que com convite roubado para uma festa em que a maioria da população nunca foi convidada. Há quase 40 anos, Raquel era o exemplo a ser seguido por quem queria ficar rico; agora, os atalhos de sua filha tendem a ser mais atrativos e eficientes num Brasil que nunca deixou de mostrar sua cara excludente e cruel.