Por: Fernando Molica

Ironia faz esquerda vestir black tie

Bolsonaro lancha numa padaria | Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Ao ironizar o (mau) uso do idioma inglês por Jair Bolsonaro, parte da esquerda mostrou seu elitismo e reforçou uma imagem por ele tantas vezes reiterada. A frase em inglês dita por ele no ato de domingo integra o mesmo pacote do leite condensado com pão no café da manhã e do cachorro-quente numa barraca de Resende (RJ).

É absurdo que um ex-oficial, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras, seja incapaz de ler meia dúzia de palavras em inglês. Isso ajuda a mostrar as deficiências de um ensino que se diz de elite, que adora enfatizar suas supostas qualidades.

Mas, ao ressaltarem essa limitação de Bolsonaro, políticos do PT, Psol e PCdoB parecem se esquecer do óbvio: vítima de uma desigualdade histórica e de falta de acesso à educação, a maioria da população brasileira também não consegue pronunciar palavras em idiomas estrangeiros.

Ao rirem da trapalhada, esses representantes da esquerda indicam um distanciamento da realidade, dão margem para que sejam acusados de não compreenderem o povo que querem representar. Em entrevista publicada na Folha de S.Paulo no último dia 3, a ex-deputada Manuela D'Ávila ressaltou que Bolsonaro não aparece ao lado de garçom servindo vinho tinto e filé, citou que a vida dos parlamentares é muito diferente da dos trabalhadores:

"Vários traços da vida institucional são, diante dos olhos do povo, luxos aos quais a população não pode se dar", afirmou a ex-parlamentar do PCdoB. Citou que ao criar o episódio do leite condensado, o ex-presidente "passa a ideia de maior proximidade e identidade" com a população. 

Não podemos voltar à caspa que o então presidente Jânio Quadros espalhava no seu terno e ao sanduíche de mortadela que ele comia na frente dos fotógrafos. Deputados têm bons salários, não precisam esconder seus hábitos: os de esquerda ainda têm o direito de alegar que querem socializar a abundância, e não a pobreza.

Mas, ao ironizarem Bolsonaro por sua ignorância da língua inglesa, permitem que muitos milhões de brasileiros se sintam humilhados — nada pior que a arrogância intelectual, a desvalorização do saber alheio, a hierarquização do conhecimento. Muitas adesões ao bolsonarismo foram alimentadas pelo ressentimento dos que se sentiam discriminados e excluídos por uma elite que desprezava seus valores e concepções de mundo.

No subtítulo do livro "O pobre de direita", lançado no fim do ano passado pela Civilização Brasileira, o sociólogo Jésse Souza — um intelectual de esquerda — resumiu um sentimento amargo com a expressão "A vingança dos bastardos". Em entrevistas, destacou o papel de igrejas evangélicas no resgate da autoestima de pessoas pobres, negras, desprezadas pela sociedade.

A extrema direita surfou nessa revolta, canalizou sentimentos e frustrações dos que não frequentam livrarias ou teatros, não estudaram em boas universidades públicas — muita gente adorou quando ministros de Bolsonaro disseram que essas instituições eram reduto de maconheiros e libertinos.

Há quase 70 anos, Gianfrancesco Guarnieri batizou de "Eles não usam black-tie" a peça que escrevera sobre as consequências políticas e familiares de uma greve. O título fazia uma referência óbvia a personagens operários, que não usavam roupas requintadas.

Composta por Adoniran Barbosa, a música-tema — "Nóis não usa os bleque tais" — era direta, e chegava a idealizar aqueles trabalhadores: "O nosso amor é mais gostoso/ Nossa saudade dura mais/ O nosso abraço mais apertado/ Nóis não usa as bleque tais".

Bolsonaro tratou de vestir a roupa do povo e deve comemorar muito quando a esquerda faz questão de usar smoking.