Por: Fernando Molica

Marquinhos vai ao passado e joga no futuro

Marquinhos de Oswaldo Cruz lança "Agbo ato" | Foto: Leo Aversa/Divulgação

"Agbo ato", novo álbum do cantor e compositor Marquinhos de Oswaldo Cruz, é um ótimo contraponto a uma questão que vem sendo enfatizada pelo também sambista Chico Alves: a dificuldade de renovação do gênero, principalmente em sua forma mais ligada à tradição que lhe deu régua e compasso (ele chega a citar a bossa nova, que vive dos sucessos compostos há algumas décadas).

O trabalho de Marquinhos, criador do Trem do Samba e da Feira das Yabás, é quase uma resposta à reflexão do colega. Assentado em duas grandes bases, a tradição que vem de religiões de matriz africana e um romantismo em nada parecido com as declarações mais esfuziantes e literais consagradas pelo pagode, o álbum lança hoje a pedra que recupera o passado e aponta para o futuro.  

O eixo do trabalho está em "Verde bandeira", composta com Luiz Carlos Máximo, um doce e lírico manifesto que reafirma o compromisso dos autores com o samba.

Nascida como resposta a uma provocação que relacionava raiz a algo ruim, subterrâneo, a canção ressalta que nada floresce sem uma semente: Sou a mangueira que dá jamelão/ Tamarineira, já fiz tradição/ Sombra e trincheira da arte guerreira/ Meu fruto é o samba".

Também em parceria com Máximo, "Mártires dos meus sonhos" trata de um tema delicado, o pai, que na batalha para se afirmar na vida artística — história que remete à do próprio Marquinhos —, vira noites, dorme no sapato, e não consegue acompanhar como gostaria o crescimento dos filhos.

"Quem inflou seus balões?/ Quem rodou seus piões?/ Quem cuidou dos seus sonhos, pesadelos medonhos de chacais e vilões?/ Quantos sambas cantei e seus sonhos não embalei?", diz a letra. Um belíssimo e delicado lamento que leva a um tipo de ausência já abordado por Chico Buarque (citado num verso que fala em "pedaço de mim").

O samba, que trata de uma ausência provocada pela árdua fidelidade a um projeto estético e de vida, pode ser encarado como testemunho do compromisso com o objeto de uma produção artística, a tensão entre a fidelidade e a tentação de busca de caminhos mais fáceis. Assim,  faz tabelinha com o "Samba do Irajá", de Wilson Moreira e Nei Lopes, que também trata do embate entre rochedo e mar, do gosto amargo que vem dos sonhos que ficam até aquém da metade. 

O álbum é aberto e fechado com canções em iorubá compostas por Marquinhos e pelo nigeriano Ekundayo Awe. "Agbo ato", a primeira faixa, é uma expressão que trata do desejo de que algo dê certo, que joga pra frente.

Ao serem colocadas nos extremos, as duas, ambas com fortes referências africanas também no ritmo e nos arranjos, servem de moldura, avisam o que está em jogo. Não estão por lá para limitar, servem mais como referenciais; são alertas, indicações, denominações de origens demarcadas e destinos incontroláveis.

Como amarra a letra de "Raiz da memória", que ele e Rogério Lessa fizeram para a Portela em 2021 — a composição acabaria derrotada na disputa —, o samba navega na história, encara as ondas, está pronto para ser ouvido e chegar a novas terras e rodas.