Por: Fernando Molica

Fake news: a opção pela mentira - e a cumplicidade no crime

Fake news destroçam a realidade, provocam distorções nos fatos | Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Mais uma vez, grupos de extrema direita colocaram para circular em redes sociais uma falsificação grosseira de reportagem que fiz em 1996 para o Fantástico. Matéria que tratava de um tema delicado para setores da esquerda: a decisão de organizações ligadas à tentativa de guerrilha de matar militantes que consideravam traidores ou que representavam risco para seus grupos.

Baseada em entrevistas e em documentos, a reportagem sobre os chamados "justiçamentos" abria, portanto, caminho para críticas à atuação de setores da esquerda entre os anos 1960 e 1970, tratava de algo grave de, pelo menos, quatro homicídios.

Algo que poderia ser explorado por adversários, até pela direita que defende os porões da ditadura. Mas, para os viciados em fake news, fatos não são suficientes. É preciso aumentá-los, distorcê-los, neles enfiar personagens que nada têm a ver com a histórias originais. Na falsificação da matéria, os sujeitos deram um jeito de citar políticos que não tiveram qualquer relação com os tais justiçamentos, como Lula, José Dirceu e Dilma Rousseff.

A manipulação grosseira e caricatural é compatível com atitudes semelhantes, como as histórias de kit gay, mamadeira com bico em forma de pênis, banheiros unissex em escolas, rolls-royce de ouro, frigorífico que pertenceria à parentes do atual presidente da República.

Não se trata aqui de uma estratégia comum na política de exagerar este ou determinado fato atribuído a um adversário, de carregar nas tintas, de usar adjetivos pesados para caracterizar algo. O que há é a utilização consciente, industrial e reiterada da mentira como forma de conquista de poder. Um crime que, quando apontado, costuma ser defendido com o lugar-comum de uma suposta liberdade de expressão.

Seria o mesmo que defender o furto e o roubo sob a alegação do direito à propriedade: o ladrão pode alegar que apenas utilizou um método não ortodoxo para exercer seu direito de se tornar proprietário de um iPhone ou de uma SUV. Sequestrar a verdade é tão criminoso quanto afanar um objeto alheio. A informação é um bem social, tão ou mais relevante que celulares e automóveis.

A repetição industrial da mentira é capaz de corroer a sociedade, de levar milhões à morte. Ou será que defensores da indústria de fake news acham que os nazistas apenas exerciam sua liberdade de expressão ao, com a mentira, preparem terreno para o massacre? 

Insisto: o tema da tal reportagem para o Fantástico é mais do que suficiente para levantar críticas à esquerda, ao voluntarismo, à irresponsabilidade de setores que, massacrados pela ditadura, optaram por uma opção guerrilheira inviável. Mas esse tipo de crítica requer sobriedade, conhecimento histórico, capacidade de avaliação, de reconhecimento de que havia por aqui um governo ilegítimo e violento, que torturava e matava. É preciso um mínimo de honestidade intelectual, de disposição para o debate.

Nada disso interessa aos que insistem em solapar a democracia, de adubar e regar a planta golpista. Não trabalham na lógica racional, mas na de inspiração religiosa, de luta do bem contra o mal. São movidos pelo ódio, precisam formantar a discórdia a ponto de que  adversários sejam cada vez mais considerados inimigos desprezíveis, que precisam ser eliminados, que não merecem qualquer tipo de solidariedade — isso viabilizou o extermínio de judeus, facilita a chacina de palestinos.

Esses responsáveis pela propagação da mentira e do ódio só prosperam graças à cumplicidade de quem quer concordar com eles, de quem deseja ver no diferente características que justificam sua eliminação física. As fake news só repercutem porque há quem queira acreditar nelas; quem encara a falsidade como verdade — e olha que nunca foi tão fácil checar informações. Quem faz isso não pode, depois, alegar inocência, que assuma suas responsabilidades.