Eleito para compensar a hegemonia conservadora representada pelos antecessores (João Paulo II e Bento XVI), Francisco viveu a contradição de ser um papa progressista à frente de um rebanho cada mais ligado a valores tradicionais.
Responsável pela nomeação — criação, na linguagem eclesiástica — de 108 dos 135 cardeais que elegerão o novo papa, Francisco garantiu uma folgada maioria eleitoral, além de ter ampliado a diversidade geográfica dos chamados príncipes da Igreja.
Dos cardeais votantes — com até 80 anos de idade —, 41 vêm da Ásia e da África, o que corresponde a 30% dos eleitores. A Europa manterá a maior fatia no conclave, com 53 representantes, 39% do total.
A marca de Francisco fica evidente quando o número de aptos a votar é comparado com os que já atingiram a idade limite: há 61 europeus nessa situação, contra apenas 25 asiáticos ou africanos. Ou seja, a representação da Europa já foi bem mais importante.
Mas a existência de um colégio cardinalício à imagem e semelhança de Jorge Mario Bergoglio não garante aos progressistas a certeza de escolha de um deles para o exercício do pontificado. Instituição que carrega a experiência de exercer o poder por mais de dois mil anos, a Igreja Católica sabe muito bem equilibrar forças, joga mais lá ou para cá dependendo das circunstâncias.
Costuma alternar a pregação evangelizadora e revolucionária de Paulo com a visão estrutural de Pedro. Sabe muito bem combinar ousadia e moderação, como traduzido no filme "Dois papas", do brasileiro Fernando Meirelles.
Em 1978, na esteira da morte de João Paulo I, que foi papa por apenas 33 dias, a Igreja elegeu o polônes Karol Wojtya que, como João Paulo II, estimulou e legitimou a queda do comunismo na Europa. Fez tabelinhas e triangulações com governantes conservadores como o norte-americano Ronald Reagan (presidente entre 1981 e 1989) e a britânica Margaret Thatcher (primeira-ministra entre 1979 e 1990).
Em seu pontificado, Roma jogou contra a autonomia das conferências nacionais de bispos. Entrou de sola na Teologia da Libertação, que representava a ala esquerda católica, de grande influência na América Latina, inclusive no Brasil.
Assessorado pelo cardeal alemão Joseph Ratzinger — que comandava a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé — e pelo amigo D. Eugênio Sales, então arcebispo do Rio, João Paulo II tomou uma série de medidas para desestruturar a corrente progressista no Brasil.
Fechou seminários comprometidos com a formação de padres mais ligados a populações pobres, implodiu a Arquidiocese de São Paulo, então comandada por D. Paulo Evaristo Arns, exilou na pequena Mariana D. Luciano Mendes de Almeida, presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Um dos principais teólogos da libertação, Leonardo Boff — hoje colunista do Correio —, foi submetido a um período de silêncio. Ele acabaria deixando o sacerdócio. A eleição de Ratzinger para papa, em 2005, concluiu o ciclo conservador romano.
Em 2013, a renúncia de Bento XVI abriu caminho para a busca do equilíbrio: Roma foi buscar na Argentina, no "fim do mundo" — expressão usada pelo próprio Francisco — um papa capaz de refazer ligações com setores católicos reprimidos por 35 anos.
Fã de futebol, torcedor do San Lorenzo, o papa se apresentou ao mundo ao lado de D. Claudio Hummes, brasileiro, expoente da Igreja progressista, que, no comando da diocese de Santo André (SP), apoiou as greves lideradas por um tal de Luiz Inácio da Silva.
No caminho para a sacada da Basílica de São Pedro, D. Claudio pediu a Bergoglio que não se esquecesse dos pobres. O jesuíta matou no peito e adotou, como papa, o nome do fundador da ordem a que pertencia o colega brasileiro. No poder, reiterou o compromisso com os que mais sofrem, ampliou o poder feminino na Igreja, deu declarações de acolhimento a homossexuais, firmou posições ao lado de imigrantes, reconheceu o Estado da Palestina.
E despertou a ida dos católicos mais conservadores alinhados a integrantes da poderosa cúria romana e a uma extrema direita que cresceu em diversos países ao longo da última década.
Poucas vezes um papa foi tão criticado em público por integrantes de seu próprio rebanho. A pulverização de poder característica dos cada vez mais numerosos evangélicos reforçou visões cada vez menos centralizadoras — o mundo passou a falar mais grosso com Roma.
A morte de Francisco dá chance para um novo equilíbrio de forças; mesmo os cardeais mais progressistas sabem que precisam ir devagar com o andor. Políticos, eles ainda podem atribuir algumas concessões ao Espírito Santo, aquele que, em "Conclave", filme de Edward Berger, interrompe com o vento oriundo de uma explosão o impasse que reinava na escolha do sucessor de Pedro.