Filipe Luís mostrou a nudez das bets

A fala de Filipe Luís é uma raridade no futebol brasileiro - por aqui, jogadores, treinadores, dirigentes e empresários gravitam numa espécie de universo paralelo marcado pela redundância de chavões institucionais, religiosos e políticos.

Por Fernando Molica

Gilvan Souza/CRF
Filipe Luís apontou um caminho para o mundo do futebol

Ao detalhar os malefícios das bets, o técnico do Flamengo, Filipe Luís, fez como o menino que, na fábula de Hans Christian Andersen, gritou que o rei estava nu. Ao tratar do caso de Bruno Henrique, alertou que a jogatina é um vício e criticou o onipresente patrocídio de casas de apostas a clubes de futebol.

Mais: fez isso vestido com uma camisa da comissão técnica que trazia a marca da Pixbet, patrocinadora master do clube e dona da FlaBet — casa de apostas que aparece com destaque nas camisas dos jogadores do time. O logotipo da empresa decorava o microfone em que o técnico deu suas declarações. 

A fala de Filipe Luís é uma raridade no futebol brasileiro. Por aqui, jogadores, treinadores, dirigentes e empresários gravitam numa espécie de universo paralelo marcado pela redundância de chavões institucionais, religiosos e políticos.

O técnico foi preciso até na defesa do jogador de seu time, indiciado pela Polícia Federal, que encontrou evidências de sua participação num episódio de fraude em apostas:  não disse que ele é inocente, apenas pediu respeito ao seu direito de defesa.

Felipe Luís rompeu com uma espécie de coro de contentes que finge não ver o óbvio, que as bets têm o efeito de drogas. Uma droga que arrebenta com a vida de muita gente e que gerou uma dependência de praticamente toda a cadeia produtiva do futebol — empresas de comunicação incluídas. É como se, de uma hora para outra, não se pudesse viver sem a droga, algo experimentado por dependentes químicos.

Falar em jogo responsável e em diversão não passa de uma maneira canhestra de negar responsabilidades. O adicto, de álcool, de tabaco, de drogas ilegais ou da jogatina não conhece limites. A internet acabou com qualquer possibilidade de se impedir o jogo, tornou ultrapassada até mesmo a discussão sobre reabertura de cassinos — eles estão por todo lado, ao alcance dos cliques. Mas é absurdo que este tipo de atividade possa ser livremente anunciada.

Como escreveu o jornalista Hélio Schwartsman, na Folha de S.Paulo ao condenar a publicidade das bets: o fato de defender a legalização de todas as drogas não significa que ele queira vez comerciais de cocaína na TV. Imagine ouvirmos um "cheire com moderação" no fim de um comercial da droga.

No ano passado, a coluna Correio Bastidores registrou como as muitas restrições à publicidade de bets aprovadas pela Câmara dos Deputados foram praticamente eliminadas pelo Senado, substituídas por recomendações anódinas no projeto de regulamentação dos jogos. Apresentados pelos petistas Gleisi Hoffmann (PR) e por Reginaldo Lopes (MG), projetos que proíbem esse tipo de propaganda dormem nas gavetas da Câmara.  

Todos temos o direito de fazermos o que bem entendermos com nosso dinheiro, mas, assim como no caso das drogas, é dever do Estado não permitir o estímulo a hábitos capazes de desencadear processos praticamente incontroláveis em muitas pessoas. Como ressaltou o técnico rubro-negro, há 20 anos todos achavam normal que fabricantes de cigarros patrocinassem corridas de Fórmula 1.

Quem tem mais de 40 anos deve lembrar de comerciais que associavam cigarros a atividades esportivas, aventura, sucesso e até desempenho sexual. Muita gente reclamou quando esse tipo de publicidade foi proibida; ainda hoje, bebidas alcoólicas podem ser anunciadas, mesmo que com algumas restrições. 

Ao revelar que já recusou fazer publicidade para bets, Filipe Luís lançou uma espécie de desafio para colegas de profissão e para tantos que vivem no entorno do futebol, traçou um limite ético, indicou um caminho: a bola está com todos nós.