Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Juliana Vicente: 'O poder de decisão de Ruth de Souza foi enorme até o último minuto'

A diretora Juliana Vicente | Foto: Renato Nascimento/Divulgação

Ao longo de uma década, Juliana Vicente teve a possibilidade de aprender sobre a vida e sobre a arte com uma das maiores atrizes que este país conheceu, Ruth de Souza (1921-2019). Os papos entre as duas, entremeados por uma reflexão sobre ancestralidade, ganham forma estética num documentário que chega neste fim de semana ao circuito.

Nele, a cineasta dá voz a uma estrela aplaudida em festivais como os de Berlim e Veneza em "Sinhá Moça" (1953). A cada frase, questões como o racismo, a desigualdade de gêneros e a aspereza nas escolhas profissionais saltam aos olhos do público. O trabalho de Juliana rendeu a ela o troféu Redentor de Melhor Direção no Festival do Rio, em 2022.

Ne entrevista a seguir, a realizadora, já consagrada por curtas ("Cores e Botas"), novelas ("Terra e Paixão") e longas ("Racionais: Das Ruas De São Paulo Para o Mundo") explica o processo de construção de "Diálogos com Ruth de Souza".

Há um momento, logo no início do filme, em que Ruth de Souza diz que teve uma carreira "correta". O adjetivo que uma atriz da envergadura dela utiliza para se autodefinir dói na plateia. De onde esse "correto" vem e o que ele imprime?

Juliana Vicente: Uma vez ela me disse: "Eu fiz muitos filmes, mas se você somar todas as minhas participações, não sei se chega a duas horas". Uma atriz daquela magnitude ter tido tão pouco espaço diz muito sobre o lugar das mulheres pretas na Brasil. O custo de ela existir na arte, pessoalmente, foi alto. Ela sacrificou muita coisa para ter uma carreira, mas era uma mulher muito autônoma, muito à frente de seu tempo. O poder de decisão que ela teve foi enorme até o último minuto de sua vida.

Quanto tempo durou o processo com ela?

Foram dez anos de convívio, de 2009 até um dia antes de ela ir para o hospital. Juntas, num mesmo espaço, fomos construindo o que veio a ser a narrativa. Com o tempo fui ficando mais à vontade para provocar e ela foi ficando mais malandra para brincar um pouco. Com isso, ganhamos coisas preciosas. Como havia uma certa limitação, a linguagem foi se adaptando ao que ela podia fazer, o que nos levou à conversa, ao diálogo. Depois, já na montagem, veio um outro diálogo, mais transcendental, com a ancestralidade, numa parte ficcional que dialoga mais com a mitologia do que com a religião.

O que o exemplo dela traz para as lutas de representação de mulheres prestas no Brasil?

Ela abriu caminhos não só como artistas, mas na maneira como transitou com suas escolhas.

O quanto a convivência com ela influenciou sua forma de ver a vida?

A convivência com Ruth me fez me perguntar muita coisa, inclusive se eu queria ter filho ou não ter, pela necessidade que a maternidade gerar e pelas escolhas que ela exclui. Hoje eu sou mãe. Mas são mudanças que atravessam lugares muito íntimos. Na TV, por exemplo, a Ruth teve estabilidade, mas perdeu certa projeção que poderia ter conquistado no trabalho com o cinema. Esta com ela me fez refletir sobre o lugar da mulher workaholic. Mas há uma grandeza nas decisões que ela tomou.

O que vem pela frente agora?

Estou preparando uma espécie de continuação do meu curta "Cores e Botas" para 2025, como longa-metragem.