Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Christophe Honoré: 'Estou sempre em busca de minhas cicatrizes'

Christophe Honoré, cineasta | Foto: SSIFF/Divulgação

Há sempre um aroma fúnebre nos filmes de Christophe Hnoré, por mais lúdicos e leves que sejam. Respeitado no universo da literatura, por romances como "Tout contre Léo" (1995), e elogiado nos palcos em seu trabalho como encenador, o cineasta virou um quindim pra crítica francesa, arrebatando uma legião de fãs. Ganhou tietes quando lançou o musical "Canções de amor" (2007), aos 37 anos, sendo definido como um herdeiro de Jacques Demy (1931-1990). A comparação com o mestre por trás de "Os guarda-chuvas do amor" (1964) veio pela maneira como ambos redefiniram o uso não realista da música como diálogo. Reinventaram o lirismo a partir de um diálogo com problemas concretos (e existenciais) do dia a dia. A diferença é que Honoré deu uma mão de tinta a mais nas pautas contemporâneas em seu universo de desamor e paixões condenadas pela Aids, como se viu em "Bem amadas" (2011). Mas seu regresso ao cinema, pela competição oficial do 77º Festival de Cannes, segue por trilhas diferentes, experimentais. "Marcello Mio", seu novo longa-metragem, é um jogo de armar baseado na relação entre a Chiara Mastroianni e seu pai, o astro de "La Dolce Vita" (1960). Ela resolve se vestir como ele e imitar seu modo de falar, de ser e de querer, num processo de investigação afetivo. Mas o querer é um verbo manhoso. Na entrevista a seguir, dada ao Correio da Manhã em san Sebastián, na Espanha, onde lançou o autobiográfico "Le Lycéen", Honoré disseca essas manhas.

O que torna o risco da morte e as espectralidade questões centrais no seu cinema?

CHRISTOPHER HONORÉ: Já na casa dos 50 anos, eu me vejo ligado a uma geração que escapou de se infectar com o HIV, mas que viveu suas primeiras experiências sexuais à sombra da Aids, com medo da contaminação, vendo nossos ídolos queer morrerem doentes. A Aids sempre esteve coma gente, como um fantasma, mas também como um balizador do desejo. E cinema vem do desejo. Eu filmo para exercitar o que desejo.

Você ganhou fama nos anos 2000 como um artesão do musical, apostando num registro não realista. Onde entra a linha mais experimental, e mesmo autobiográfica, de seus novos filmes?

Embora eu venha da literatura, não tenho obsessão pelas vírgulas ou pelos acentos agudos do meu texto: meu roteiro existe para ser reinventado no set. Por isso, eu não ensaio, pois prefiro trabalhar com a matéria viva da descoberta. Janto com as atrizes e os atores, converso com o elenco, dou referências do que ver ou ler e parto para um processo de interação no qual os atores personalizam a história que tenho para contar. No caso de Chiara, ela é uma amiga e uma parceira de sets. Temos já afinação. Sobre a autobiografia: eu estou sempre em busca de minhas cicatrizes.

De que maneira "Le Lycéen" traduz seu olhar sobre o tempo, o seu tempo?

É um filme sobre a dor da morte de meu pai e sobre o jovem que eu fui, sem ele. Mas transporto isso para a história de outro menino, que assume seu desejo em meio a muitas descobertas. Tem muito de mim. Não por acaso, eu mesmo interpreto a figura paterna, que morre no início. Fui a San Sebastián com ele para buscar diálogo, fazer essa trama catártica ser vista.

De alguma maneira, a sua maturidade pessoal e profissional pesa na amargura que há em torno dos personagens? Pesa na forma como Chiara se reporta a Mastroianni?

Estou no momento em que vejo uma série de jovens de 20 e poucos anos que me responsabilizam por sua escolha em fazer cinema por conta de terem visto meu "Canções de Amor" quando eram muito garotos. Eu já estou num momento de perceber uma distância geracional entre mim e uma nova linhagem de diretores.

Qual é o seu lugar hoje no cinema francês?

Um lugar de preservação da ideia de que nem todo filme precisa ser "para todos". Há um lugar comum na França que se opõe a uma arte mais intelectualizada, em oposição a narrativas mais sofisticadas, com a proposta de que a troca de ideias comum em nossa tradição cinéfila não tem mais lugar. Há um culto ao cinema de gênero, uma defesa de que todos nós, cineastas, precisamos investir em "produtos" de adesão coletiva em vez de apostarmos em histórias pessoais. Mas as histórias que tenho para contar não são pensadas por número de espectadores. Venho da literatura, da experiência solitária do leitor e do livro. Fazer cinema, pra mim, sempre foi uma experiência solitária, cercada de emoções conflitantes. Mas, aqui, a sensação de algo que não caminha, de uma paixão num impasse, é o que mais me interessa. E é o que eu tenho para dizer, com o máximo de sinceridade.