Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Keff: 'A vida não é algo que traz conforto'

Keff na sede da Semana da Crítica de Cannes | Foto: Rodrigo Fonseca

Sequências de tensão eletrizante fazem de "Locust" um candidato a sucesso de público entre os achados do 77º Festival de Cannes, revelado na Semana da Crítica, mostra competitiva paralela à disputa pela Palma de Ouro. Espaço voltado para novos talentos, a mostra vê no jovem cineasta taiwanês Keff uma revelação. É ele quem conduz, nas raias do suspense, a saga do jovem Zhong-Han, que muda de perfil ao entrar para uma gangue. O chamado do crime o atrai até o momento que afeta sua família. Ali ele precisa fazer uma escolha, ou reagir. Sua reação rende situações no limite da brutalidade, filmadas com requinte plástico.

Nesta terça, a Semana recebe o concorrente brasileiro: "Baby", de Marcelo Caetano, sobre um jovem recém-saído de um reformatório, que aprende novas formas de (sobre)viver. É parte da seleção luminosa da Croisette em 2024.

Na entrevista a seguir, Keff fala ao Correio da Manhã sobre a Taipé que retrata em "Locust".

Qual é o recorte geográfico de Taiwan que vemos no filme?

Keff: Filmamos em toda Taipé, mas em especial numa região encarada como "cidade velha", chamada Wan Hua. A modernização porque o meu país passou faz com que as pessoas já não conheçam mais os seus vizinhos. Mas em Wan Hua, não. Ali existe um clima mais acolhedor. Curiosamente, foi o lugar mais afetado durante a pandemia. Mas existe um charme local muito forte. O grande conflito geopolítico sobre Taiwan que está no filme é o fato de a nação ter passado por um grande boom econômico nos anos 1960 o que ampliou a construção nas duas décadas seguintes. No fim dos anos 1980, esse crescimento parou. Na região onde "Locust" se passa, a sensação que temos é de estar numa capsula do tempo, indo a uma certa sensação de passado.

Esse passado também parece evocar o cinema, sobretudo os filmes de ação dos anos 1980. A que narrativas você se reporta diretamente com relação à Era Ploc?

Por eu me referir a Hong Kong, as pessoas pensam em grandes filmes feitos lá nos anos 1990, como os longas de John Woo, tipo "Fervura Máxima". Mas não é por aí que eu vou. Meu interesse pela representação da violência na tela não passa pela tecnicalidade. Não gosto de representar um confronto com beleza, mas, sim, com a rusticidade de uma briga de bar. Não por acaso, em "Locust", eu pedia que meu coreógrafo criasse lutas menos "arrumadinhas", de modo a bagunçar mesmo os movimentos. Filmei com câmera na mão para garantir esse estilo. O filme de Hong Kong que mais me interessava era "As Tears Go By - Conflito Mortal", de Wong Kar-Wai. Ali tem um lado romântico que me interessa. Esse romantismo está no fascínio que leva alguém a entrar numa gangue, a querer ser um gângster. O fascínio de fazer parte de um grupo, uma outra família.

Esse fascínio, no caso do seu protagonista, não passa por uma sensação de solidão? Se sim, que solidão é essa?

A vida não é algo que nos traz conforto e ele percebe isso. Ele entra num mundo novo, e hostil. O que ele faz é proteger sua dignidade, seja lá a que custo. Essa gangue a que sujo vira um clã que o adota e atenua a solidão que ele sente, como pode.

Nesse aspecto, que heroísmo seu personagem principal simboliza?

Há vários tipos de heroísmo, e sobreviver é um deles. O caminho pelo qual ele decide ir é perigoso e talvez não mude nada, talvez ele nem sobreviva. Mas seja por teimosia ou por ego, ele vai adiante.

De que maneira o seu filme conversa com a tradição do cinema taiwanês?

Gosto muito do novo cinema que se faz lá, mas é nos mestres que eu mais encontro um abrigo. Falo de Tai Ming-liang e de Edward Yang, que são poetas ao falar da vida nas cidades. Edward fala sobre como as cidades corrompem as pessoas. Já Tsai aborda os absurdos da vida moderna. O que eu tento captar dos dois são os instantes que tornam o cotidiano urbano algo singular. As pessoas hoje têm dificuldade enorme de dialogarem. Meu filme fala sobre esse abismo da inabilidade de as pessoas conversarem.