Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

'A Batalha da Rua Maria Antônia', um épico contra a ditadura

'A Batalha da Rua Maria Antônia', enfim, estreia no cidade onde conquistou o Redentor na edição 2023 do Festival do Rio | Foto: Pedro Prado/Divulgação

Vencedor da competição nacional do Festival do Rio 2023, "A Batalha da Rua Maria Antônia", uma colossal reconstrução de época com foco na ditadura militar, ficou quase um ano e meio à espera de telas, mas, enfim, encontrou circuito. Estreia no próximo dia 27. O lançamento desse thriller político dirigido por Vera Egito dialoga frontalmente com as reflexões históricas trazidas pelo ganhador do Oscar "Ainda Estou Aqui". Ambos propõem uma revisão histórica dos Anos de Chumbo, cada um à sua maneira, inspirados por fatos reais.

Em 2023, o júri da Première Brasil valorizou o risco absoluto corrido por Vera numa narrativa em PB de estética nervosa. Indicado a prêmios em festivais em Valladolid e Chicago, "A Batalha da Rua Maria Antônia" se impôs na telona do Estação NET Gávea e do Odeon a partir de um jogo de armar estruturado a partir de 21 planos-sequência.

Um espetáculo entre o drama e a ação se forma na recriação proustiana de 1968, o chamado Ano Que Não Acabou. Sua estrutura formal chega a ser inóspita em seu arranjo nada convencional de ideias. Arma-se um teatro de máscaras na trama quando o líder estudantil Benjamim (Caio Horowicz, atômico em sua atuação) aparece no campus da Faculdade de Filosofia da USP para manter seus colegas fora das CNTPs (condições normais de temperatura e pressão). Ele agita sua turma e outras em meio a uma batalha em outubro do 68. Seus métodos são sedutores, mas, parecem desrespeitar códigos de ética e sentimentos. Benjamin encena um jogo de decapitações com seus companheiros de aula e incomoda, em especial, uma atormentada professora, Leda (Gabriela Carneiro da Cunha, em estado de graça).

Em nome da democracia, Benjamin tenta manter inflamado o corpo discente e o docente de sua instituição. Tem gente ali abalada por mágoas afetivas. Outras temem a foice do Estado que vestia farda na época. Mas um grupo reage à mordaça do governo, sendo oprimido pela direita radical.

Na direção de fotografia, Will Etchebehere ricocheteia por planos de triagem de diferentes salas, corredores e centros acadêmicos de uma faculdade encarada, à época, como o ovo da serpente dos inimigos do governo de farda. A montagem de Julia Zakia galvaniza o fluxo de imagens cor de chumbo, penumbrosas, revivificando um pretérito imperfeito, que reside como zumbi no imaginário sócio-político da nação.

Num roteiro enxuto, mas bastante provocativo, a diretora de "Amores Urbanos" (2016) discute resiliência, combate e inércia à luz da brasilidade. Em seu agonizante filme, a luta simbólica de 1968 é um espaço de afirmação de identidade. É um ritual que nos baliza pela resistência e que espelhou combates recentes, na Era Bolsonaro. O que acontece é que esse ritual despertou bestas e invocou diabos. É o que o filme mostra, sobretudo na figura mefistofélica de Benjamin construída por Horowicz.

Numa linha de edição que assume o número dos planos como se fosse um relógio, a contabilizar a armação e a explosão inevitável de uma bomba moral, Vera "encena" a SP do fim dos anos 1960 menos pelos e mais pelas impressões do que o passado teria sido. Concentra tudo num tempo curto, numa noite definitiva. Os personagens enfrentam os ataques do Comando de Caça aos Comunistas vindos do outro lado da rua, da Universidade Mackenzie. Quando o confronto explode, molotovs, pedras, paus e bombas são atirados. É uma narrativa de 24 horas nas quais conflitos afetivos, tensões sexuais, ciúmes e traições ideológicas (concentradas na professora Lea), revisitam nosso pretérito imperfeito.