O cineasta Murilo Salles resolveu encarar as diferentes faces de Mário de Andrade (1893-1945), escritor que não furtou a lançar uma provocação sobre si mesmo: "Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta", registrou em um de seus poemas.
"Mário de Andrade, o turista aprendiz" parte de trechos do livro citado no título do filme, textos em que o escritor narra sua viagem de barco pela Amazônia em 1927. Embarcou acompanhado de três mulheres, exemplos da rica Paulicéia que seria eternizada como desvairada.
A jornada revela tanto do ambiente externo quanto do próprio narrador. O impacto causado pela floresta, pelos rios e pela população nativa faz com que o escritor reavalie não apenas sua visão de Brasil, mas também a própria relação consigo mesmo.
O país e Mário (interpretado por Rodrigo Mercadante) tornam-se assim terras de conflitos, de questionamentos de certezas, de frustrações de conceitos e de tentativas de enquadramento.
A presença de estrangeiros no barco e as referências culturais europeias impregnadas em Mário ressaltam o tamanho das contradições — não é o caso de ser ou de não ser, mas de não se ter muita ideia do que se é. Para dentro do barco — "Vaticano" —, o escritor, católico, levou impasses relacionados à sua ascendência negra, à sua sexualidade e ao seu conceito de Brasil (quem sou eu, que país é esse?, parece se perguntar o tempo inteiro).
O fato de ser sido todo gravado em estúdio ressalta o tom assumidamente artificial e irônico de "Mário de Andrade, o turista aprendiz". Não se trata de um rio facilmente navegável, o filme desafia a placidez das águas amazônicas, reverbera mistérios da floresta que explodem num narrador com frequência assustado, surpreso com o que vê e que é obrigado reelaborar.
O impacto acabaria sendo decisivo para que Mário escrevesse sua principal obra, "Macunaíma, o herói sem nenhum caráter". Um romance que parte da narrativa de outro viajante pela Amazônia, o alemão Teodor Koch-Grünberg, que em 1924 publicara um volume sobre o mito indígena que trata de Makunaíma, a ele apresentado em diferentes versões — também era mais de um.
A viagem e o mito seriam condensados por Mário na ideia de que seria inútil buscar um jeito que resumisse o jeito de sentir, pensar e agir dos brasileiros, não daria para forçar a barra de forjar algo como um caráter único, particular, definidor e determinante. Somos resultado de uma tensão permanente entre passado e futuro incertos e temerários.
Ao optar por um protagonista sem caráter dominante, o escritor arrebentou com a própria perspectiva de definição. Livrou-se da obrigação determinista do comedor de gente Piaimã; sua muiraquitã passou a ser a que lhe apontava um país sempre em construção, de infinitas, complementares e conflitantes características. Descobriu que seria preciso não abdicar de ser um aprendiz.