Por: Ricardo Cravo Albin

O que fazer com a cultura no Rio?

Certa vez, meu amigo Luiz da Câmara Cascudo, mestre de todos nós e raro exemplar de sábio brasileiro, declarou ao entrar no Museu da Imagem e do Som do Rio para prestar comigo o seu histórico testemunho oral para a posteridade, lá pelos idos de 1969: -" Veja você o que é cultura, toda uma universidade do saber e da memória está armazenada nessas fitas de rolo todas iguais e , por sinal, muito feias". Prova mais que evidente que cultura está dentro e não fora, está implícita e não explícita. Evoco essas reflexões do sábio de Natal, no Rio Grande do Norte, por minha grandíssima admiração pelo Cascudo.

Eu me confesso entediado com a discussão estéril sobre a abrangência do fato e/ou do ato cultural. Contudo, muitos de nós - militantes da cultura e também suas quase vítimas no sentido mais prosaico do abandono a que ela foi relegada - sabemos muito bem, pelo menos, o que não queremos. A começar pelo simplismo daquele até simpático ministro que assegurava — com a mais cândida das ingenuidades — que broa de milho era cultura, receita indigesta por certo do populismo verbal inconsequente com a necessidade de democratização e acesso ao bem cultural.

Aliás, sobre a dicotomia cultura e aumento do conhecimento humano, o filósofo britânico, Karl Popper, com toda sua carga de sofisticação intelectual, encontrou-se no vértice da essência do seu pensamento sobre cultura conhecimento com o poeta carioca Noel Rosa. Noel que, com toda leveza de sua simplicidade genial, resumiu a necessidade do conhecimento nos seus versos para o samba "Rapaz folgado" (1933): "- Da polícia quero que escapes/ Já te dei papel e lápis/ (pra aprender a escrever e a saber)/ Arranja um amor/ E um violão".

O samba "Rapaz Folgado" , de Noel Rosa, fez iniciar uma das mais célebres e reveladoras (até sociologicamente) polêmicas da MPB. O excelente e iniciante sambista semi-analfabeto Wilson Batista havia feito uma música (1933) logo gravada por Sílvio Caldas, em que fazia a apologia da malandragem. Chamava-se "Lenço no Pescoço" e não deixava de ser uma provocação aos sambistas oriundos da classe média: "Meu chapéu de lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso/ Eu ando gingando/ Provoco desafio/ Eu tenho orgulho/ Em ser tão vadio".

Noel explicitamente respondeu, abrindo a polêmica, com "Rapaz Folgado": "Deixa de arrastar o teu tamanco/ Pois tamanco nunca foi sandália/ Tira do pescoço o lenço branco/ Compra sapato e gravata/ E joga fora esta navalha/ Que te atrapalha". E conclui, exortando Wilson a se alfabetizar e a galgar uma nova posição social, que já era a dele, Noel: "Da polícia quero que escapes/ Já te dei papel e lápis/ Arranja um amor/ E um violão".

Wilson faria uma réplica constrangedora em que atacava a feiúra de Noel chamando-lhe Frankstein da Vila: "Boa impressão nunca se tem/ Quando se encontra um certo alguém/ Que até parece o Frankstein".

Noel treplicaria com a obra-prima "Palpite Infeliz: "Quem é você/ Que não sabe o que diz/ Meu Deus do céu, que palpite infeliz! ". E a polêmica mais reveladora de classes socio-culturais no Rio dos anos 30 se esgotaria com o jovem Wilson fazendo, sem obter senão o silêncio de Noel, mais ameaças e ataques ao desafeto: "Você, que é Mocinho da Vila/ Fala muito em violão, barracão e outros fricotes mais/ E se não quiser perder o nome/ Cuida do seu microfone/E deixa quem é malandro em paz". E na segunda parte, reafirma sua condição sócio-cultural: "Injusto é seu comentário/ Fala de malandro/ Quem é otário.

Um projeto cultural que se preze deve evitar, a qualquer custo, as tentações do inchaço da máquina estatal e só admitir a interferência de poder público onde ele for absolutamente necessário, como no caso da fiscalização e defesa mais severa do patrimônio arquitetônico do país, sempre a perigo desde que Rodrigo de Mello Franco alertou para seu desaparecimento, há mais de setenta anos. Um projeto responsável deve mesmo é encontrar incentivos. Incentivos e não derrame de dinheiro das tetas públicas. Desse modo, os agentes culturais podem desenvolver planos viáveis, criativos e que estejam a serviço do país. E não deles próprios. As leis de incentivo fiscal — por exemplo — terão sido o mais adequado instrumento que o Brasil já teve para desenvolver a cultura. Só que vêm sendo deficientemente aplicadas e fiscalizadas pela autoridade pública. Por que não reformá-las com instrumentos mais seguros e transparentes para sua aplicabilidade? Os agentes culturais, sejam públicos ou particulares, devem aprender — por seu turno — que o clientelismo e as tetas da viúva são coisas do passado.

Há tempos atrás, viajando em muitas missões culturais pelos Estados Unidos e Europa, comprovei que lá a interferência do Estado é de abrir portas, levantar parcerias, estimular os núcleos verdadeiramente comunitários e nunca prestigiar grupelhos ou faunas exóticas, de poucos gatos pingados. Ou seja: a cultura é para muitos, nunca para meia dúzia. Mas é claro que o Estado deve ser eficaz e trabalhar com afinco para que os incentivos particulares apareçam e favoreçam todos os projetos relevantes, desde discos, espetáculos públicos, até a preservação do patrimônio. E sempre com um sentido muito preciso de distinguir o que é valor cultural permanente e entretenimento passageiro.

Aliás, falando em valores culturais permanentes evoco aqui que quando entreguei, ao Museu do Som de Estocolmo os históricos dois elepês que produzi, em 1968, para o MIS com Elizeth Cardoso, Zimbo Trio e Jacob do Bandolim, o austero e formalíssimo diretor sueco aqueceu meu coração ao dizer que sempre conheceu o melhor da música do Brasil, exatamente por esses discos, que ele recebera de presente de dois exilados brasileiros (Quero crer que um deles fosse Darcy Ribeiro).

Os valores permanentes, portanto, sejam quais forem, devem ser a régua e o compasso para que se desenhe o projeto de uma política correta de incentivos para a cultura.