Cheia de amor pelo Brasil, numa consagração de "O Último Azul", de Gabriel Mascaro, a 75ª Berlinale encerrou suas atividades no domingo demarcando um repertório de narrativas nas quais o otimismo superava o habitual catastrofismo das curadorias germânicas anteriores. A nova diretora artística do evento, Tricia Tuttle, explicou numa coletiva que "a arte da escuta" sempre foi o atributo principal da maratona cinéfila da Alemanha. Por isso, ao sair da direção artística do BFI London Film Festival para assumir a guarda das mostras (competitivas ou não) de Berlim, a programadora quis emular essa habilidade de "escutar", abrindo seus ouvidos para os ecos autorais do Presente. Ouviu expressões de indignação, lamentos e brados de guerra, mas soube decantar cânticos de prospecção nada derrotistas, a fim de compor uma seleção que mira o porvir, do mundo e da própria arte cinematográfica. Confira a seguir o que Berlim viu de melhor.
SORDA, de Eva Libertad (Espanha): A pátria de Almodóvar sempre faz bonito na Berlinale, quando entra em sua grade. Voltou para casa este ano com a láurea da Associação de Cinemas de Arte da Europa graças à batalha de Ángela, uma mulher com problemas auditivos, e Héctor, seu parceiro. Eles estão esperando um filho. Apesar de muito animados com a gravidez, não sabem se o bebê vai herdar a surdez da mãe. Depois de um trabalho de parto complicado e emocionalmente intenso, Ángela dá à luz sua filha, mas o casal terá que esperar alguns meses para saber se a neném sofre de algum problema de audição. Durante esse período, Héctor se esforça para entender completamente os desafios que Ángela está enfrentando, enquanto ela precisa se conformar com a criação de um ser a quem pretende dedicar todo o seu querer.
BEGINNINGS ("Begyndelser"), de Jeanette Nordahl (Dinamarca): Destaque de "A Garota da Agulha" (hoje na MUBI e no páreo do Oscar), Trine Dyrholm foi premiada pela Berlinale em 2016, por "A Comunidade" e, desde então, filme após filme, ela se impõe como uma estrela de prestígio global, sempre levando a potência dramatúrgica escandinava consigo. Em seu filme mais recente, Trine vive Ane, cujo casamento com Thomas está nos finalmentes, pois ele já tem uma namorada. Depois que ela sofre um derrame, ele decide ficar e tenta reinventar a relação.
HORA DO RECREIO, de Lucia Murat (Brasil): Eis o filme mais requintado da realizadora carioca desde "Quase Dois Irmãos" (2004). Deixou a Berlinale coroado com a menção honrosa do júri da mostra Generation. É uma aula de estrutura dramatúrgica. Murat retrata a reação de uma série de estudantes a uma pesquisa com professores da rede pública. Os jovens documentados discutem temas como evasão escolar, racismo, tráfico de drogas, bala perdida, feminicídio e gravidez precoce, além de performarem uma peça de teatro baseada no livro "Clara dos Anjos". Por meio dessa dramatização, realizada por atores dos grupos Nós do Morro, do Vidigal; Grupo de Teatro VOZES, do Cantagalo; e Instituto Arteiros, da Cidade de Deus, alunas e alunos em cena comparam as interpretações às suas vivências como moradores de comunidades.
LITTLE TROUBLE GIRLS ("Kaj ti je deklica"), de Urška Djukic (Eslovênia): Um estudo sobre o benquerer e as sequelas que ele pode trazer no despertar da primavera da vida. Foi laureado com o Prêmio da Crítica, pela excelência de sua edição. Na trama, montada com elegância, Lucia, uma jovem introvertida de 16 anos, entra para o coral feminino de sua escola católica, onde faz amizade com Ana-Maria, uma aluna popular e sedutora do terceiro ano. Durante um retiro de fim de semana em um convento remoto no campo, para ensaios intensivos, a crescente fascinação de Lucia por um restaurador começa a prejudicar seu vínculo com Ana-Maria e o restante de suas colegas de canto. Em meio a um ambiente desconhecido e ao despertar de sua sexualidade nascente, Lucia se vê questionando suas crenças e valores.
LESBIAN SPACE PRINCESS, de Emma Hough Hobbs e Leela Varghes (Austrália): Nas quebradas do Oscar com "Memórias de um Caracol", a animação australiana ganhou um reforço e tanto ao conquistar o troféu Teddy da Berlinale com esta comédia interplanetária. Em seu enredo, a introvertida princesa Saira, filha das extravagantes rainhas lésbicas do planeta Clitópolis, fica arrasada quando sua namorada, a caçadora de recompensas Kiki, termina repentinamente com ela por ser muito carente. Quando Kiki é sequestrada pelo povo mau chamado Straight White Maliens, Saira precisa deixar o conforto da "gayláxia" para entregar o resgate solicitado: seu Royal Labrys, a arma mais poderosa conhecida no universo. O uso de cores na direção de arte é um deslumbre.
HOLDING LIAT, de Brandon Kramer (EUA, Israel): Uma eletrizante análise observacional do paiol de pólvora que o Oriente Médio pode ser. Seu foco é o sofrimento de uma família com quem tinham uma conexão prévia. Depois que a guia de turismo Liat Beinin Atzili foi raptada, em Kibbutz Nir Oz, em 7 de outubro de 2023, seus parentes - os israelenses e os americanos - enfrentam uma fase de horror, com medo de que ela seja assassinada. Seus entes queridos se unem para lutar pela sua libertação e pelo futuro de um projeto político de nação. Kramer ganhou o Prêmio do Júri Ecumênico pela forma como condensa a angústia de uma espera.
A MELHOR MÃE DO MUNDO, de Anna Muylaert (Brasil): Shirley Cruz demarca para sempre sua relevância como atriz de escopo internacional ao viver a catadora de material reciclável Gal, com base em um vasto espectro de gestos, usando o silêncio como um cinzel para esculpir a dor de sua personagem. O dilema de Gal é proteger a filha e o filho, ambos menores, do atual companheiro, um segurança que parte pra pancada quando exagera na cerveja. A direção da realizadora de "Que Horas Ela Volta?" (2015) cartografa uma São Paulo a céu aberto, resiliente.
BAJO LAS BANDERAS, EL SOL, de Juanjo Pereira (Paraguai): Sete anos depois da consagração de "As Herdeiras", nuestros Hermanos paraguaios voltam a se destacar no coração berlinense. Este documentário é um mosaico de exuberante montagem. Sua estrutura formal é uma reação à recordações latinas de 1989, ano da queda da ditadura de 35 anos de Alfredo Stroessner. Sua saída do Poder marcou o fim de um dos regimes autoritários mais duradouros do mundo. Isso também levou ao abandono dos arquivos audiovisuais que haviam consolidado seu comando. Esse material, criado para moldar uma identidade nacional e celebrar um regime de direita, foi deixado para desaparecer da memória. Juanjo cuidou para evitar esse destino.
DUAS VEZES JOÃO LIBERADA, de Paula Tomás Marques (Portugal): A partir das vivências de um corpo avesso ao binarismo histórico, inconformado com o dito "determinismo biológico", este experimento poético festeja o desejo de pessoas que almejam ser as profetas de suas próprias histórias, embora a Inquisição cruze seu caminho.
NO BEAST, SO FIERCE ("Kein Tier. So Wild."), de Burhan Qurbani (Alemanha): Cinco anos depois do visceral "Berlin Alexanderplatz" (2020), o realizador renano de origem afegã volta à Berlinale com uma reinvenção de "Ricardo III" centrada nas quadrilhas de origem árabe. Kenda Hmeidan tem uma atuação de escaldar o frio alemão no papel de Rashida, a filha mais nova o clã York, que ascende como líder do submundo de Berlim. Sua forma de retratar tiroteios deixaria Vin Diesel com inveja.
MAYA, DONNE-MOI UN TITRE, de Michel Gondry (França): Cerca de 21 anos depois de rodar "Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças" (2004), o mestre do videoclipe resolve apostar na animação, fazendo um experimento nas raias da colagem, estruturado como uma carta de amor à sua filha. Faz dela personagem, numa reflexão sobre como as crianças reinventam a realidade a partir de referências banais do cotidiano, como batatas fritas. Ganhou o Urso de Cristal da mostra Generation.
MEMORIAS DE LAS MARIPOSAS, de Tatiana Fuentes Sadowski (Peru): Um merecido Prêmio da Crítica ampliou o futuro desta produção documental peruana. Diretora de "La Huella" (2012), Tatiana teve sua atenção capturada por uma foto antiga de dois homens indígenas levados a Londres para serem "civilizados" por volta da virada do século XX. Seus nomes eram conhecidos - Omarino e Aredomi - mas pouco ou quase nada se sabia sobre eles. Por isso, Tatiana sentiu-se compelida a se aprofundar no passado da dupla - e de sua pátria. O que faz neste poroso filme é desconstruir a história oficial do comércio extrativista borracheiro no final do século XIX e início do século XX.
THE OLD WOMAN WITH THE KNIFE ("Pa-gwa"), de Min Kyu-dong (Coreia do Sul): Eis a cota anual de thrillers da terra de "Parasita" (2019). Sua estrela, Lee Hye-young, tem uma elegante atuação no papel da matadora Hornclaw (Hye-young). Ela se sustenta desde os anos 1970 como assassina. Na briga com faca, ninguém ganha dela. Sua vida mundana, mas sangrenta, toma um rumo inesperado quando conhece um jovem assassino cheio de gana que deseja trabalhar ao seu lado. Ela reluta e refuta, mas saca o talento do moço. Aos poucos, um incidente do passado vem à tona, num indício de que ele esconde uma sujeira da grossa.