Por Francisco Neto Pereira Pinto*
O entrelaçamento entre desejo dos pais e relações de gênero, a que alude o título deste artigo, pode ser visto quando o casal decide ter filhos. Ainda é muito comum que a preferência seja por um filho homem quando se trata da primeira gravidez, reservada a segunda gravidez para a filha mulher, que viria, neste caso, para formar um casal de filhos, correspondendo a uma fantasia muito comum entre pais. Essa é uma herança da qual a família pequeno-burguesa contemporânea não tem conseguido se desfazer. No modelo aristocrático, em que casamento era negócio, e não sentimento, o que importava era o primeiro filho, se fosse homem, para ser o herdeiro dos negócios da família. Hoje, mesmo quando as famílias se estruturam por laços afetivos, esse modelo de escolha de filiação permanece. Não é por acaso que a historiadora norte-americana Joan Scott já dizia que o gênero está no princípio e é estruturante dos modos de organização das relações humanas e, portanto, das relações de poder.
Essa ideia é ilustrada pelo conto Você me queria? que faz parte do livro À beira do Araguaia. Eve, a primogênita do casal Ana e Pedro, a partir de um acontecimento escolar, aparentemente banal, é tomada pela dúvida quanto a se seus pais realmente a desejaram enquanto ainda estavam grávidos ou se, na verdade, teriam desejado um menino. Ela interroga primeiramente a mãe, depois a avó paterna e, por fim, o próprio pai. O modo como a narrativa trata o assunto indica que a perplexidade de Eve interroga a própria sociedade contemporânea, deixando à mostra o núcleo patriarcal que estrutura e modula o nosso desejo que, pela sua natureza, é inconsciente bem como ainda ambivalente quando se trata do lugar da mulher neste nosso século XXI.
*Escritor e psicanalista. Doutor em Letras. É Professor Permanente no Programa de Mestrado e Doutorado em Linguística e Literatura da Universidade Federal do Norte do Tocantins.