Por: Fernando Molica

Um jeito natural e esquisito de falar e amar

Prêmio Nobel de Literatura, Jon Fosse traduz, no texto de "Trilogia", o caos de seus personagens. | Foto: Tom A.Kolstad/Editora Fósforo/Divulgação

Nas primeiras páginas de  "Trilogia" (Companhia das Letras), livro de Jon Fosse, é impossível não estranhar o jeito de o autor narrar e citar falas dos personagens. Os pontos são quase ausentes, e os diálogos soam esquisitos, e não por falta de aspas e travessões — há muito tempo que vários escritores abandonaram essa convenção.

O ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2023 parece fazer um esforço para escrever não do jeito que o leitor acha que um personagem deve falar, mas do jeito que eles efetivamente falam, e pensam, e falam, e pensam. As palavras a eles atribuídas representam muito mais um fluxo de pensamento, um jorro que dispensa pontos, vírgulas, sujeito, verbo, predicado.

É como se o autor tivesse buscado não as frases que todos — personagens de ficção ou não — procuramos medir e editar no nosso dia a dia. Palavras nem sempre traduzem o que sentimos ou pensamos, são, na melhor hipótese, o jeito que adotamos para melhor expressar — e esconder — desejos, opiniões, reflexões. Somos nossos primeiros censores, daí a alegria de psicanalistas quando o paciente comete um ato falho e revela algo tão verdadeiro que preferiria não citar.

A escrita do norueguês é tão curiosa que, num primeiro momento, pode dar a impressão de que ele não sabe escrever, que usa e abusa de repetições comuns a quem dá os primeiros passos no ofício de narrar. Na página 34, ele conclui sete frases de personagens praticamente da mesma forma, e com o mesmo verbo: "diz a Menina", "ela diz", "ele diz", "ela diz". 

A redundância vai, aos poucos, revelando a sua lógica. Fosse demonstra querer que seus personagens digam o que querem dizer mesmo, não o que nós, leitores, queremos que eles digam, do jeito que gostamos de ler. No romance, que finge ser uma coletânea de três novelas, Fosse atua como se estivesse a serviço de seus personagens, algo aparentemente insano: em tese, criadores mandam em suas criaturas (quem escreve ficção sabe que não é assim). É como se ele, para exercer essa tarefa, recuperasse uma forma de expressão bruta, anterior à lapidação feita pelo processo de escrita.

"Trilogia" é sobre uma improvável e trágica história de amor entre jovens errantes, desconectados de suas famílias — um deles, Asle, é um músico, filho de músico, mas as canções que executa com sua vida não obedecem a qualquer partitura, ele se move como num solo radical de jazz, que sequer tem compromissos com a melodia original e com padrões de afinação. A escrita procura traduzir esse universo caótico e incontrolável, movido por um desejo absoluto, que não admite qualquer obstáculo.

Fosse indica ter concluído que uma escrita mais convencional não seria suficiente para abarcar todas as improváveis atitudes de seus personagens — ou, sabe-se lá, eles é que disseram pro autor que não aceitariam ser enquadrados por fórmulas mais usuais na literatura. Quem manda ali são eles, mandam tanto que fazem o escritor citar apenas de raspão passagens que, em outros livros, seriam decisivas, que tratam de crimes, de homicídios.

Na escrita do norueguês, o importante não são esses fatos, por mais dramáticos e graves que sejam. O que está mesmo em jogo é a vida dos dois protagonistas, pessoas marcadas por uma espécie de inviabilidade. Que mergulham de maneira alucinada num amor narcísico, que chega em ondas sucessivas, que afoga, mata e renasce e cria um sentido próprio, que só a muito custo e trabalho Fosse consegue decifrar. O livro termina sem ponto final, como o ir e vir das marés.