Por: Fernando Molica

STF tem chance de refundar a República

Ministro Alexandre de Moraes ontem, no STF | Foto: Rosinei Coutinho/STF

Pela primeira vez na nossa história, militares e civis acusados de tentarem dar um golpe de Estado deverão ser processados e julgados — e isso não é pouco. Ao, muito provavelmente, mandar para o banco dos réus um ex-presidente e oficiais-generais da reserva, o Supremo Tribunal Federal tomará uma atitude capaz de refundar uma república nascida de uma quartelada.

A Procuradoria-Geral da República e o STF deverão fazer o que o poder civil, por cumplicidade, medo ou oportunismo, nunca tentou: colocar um freio na lógica perversa que, na prática, concede aos militares o direito de intervir nos destinos do país.

As esperadas futuras condenações terão um caráter didático. Tendem a acabar com essa carta-bomba guardada nas mangas de fardas por militares e pelas sempre renovadas vivandeiras de quartéis. Uma prática que há quase 136 anos assombra o país, permite a funcionários públicos o direito de derrubarem governos e estabelecerem ditaduras.

Os dois últimos anos do mandato de Jair Bolsonaro ressuscitaram uma rotina comum nos anos 1980, quando a ditadura caía de podre, negociava com civis a devolução de um país quebrado e tratava de garantir uma transição que garantisse impunidade a torturadores e assassinos.

Na época, veículos de imprensa não podiam abrir mão de cobrir cerimônias castrenses; nós, repórteres, lutávamos para conseguir declarações de ministros militares (na época, cada força tinha sua pasta). Eles eram estimulados a falar sobre abertura política, respeito às urnas e retomada das eleições diretas para presidente.

Cada nota emitida pelos tais ministros era lida com lupa, era preciso catar em todas as linhas e entrelinhas referências a ameaças de retrocesso político. Na prática, reconhecíamos - fazer o quê? - que eles poderiam acabar com a festa.

O mesmo ocorreu a partir de 2021, quando os propósitos golpistas de Bolsonaro ficaram ainda mais claros. E tome de declarações dúbias, de notas e mais notas oficiais, de general-ministro da Defesa dando palpite em urna eletrônica (como se eles, militares, entendessem de eleição, são bons em acabar com elas).

O caráter recíproco da anistia de 1979 foi decisivo para preservar a tutela dos militares sobre o país — a não punição de torturadores passou para os quartéis e para a sociedade o recado de que os fardados podiam fazer o que quisessem, jamais seriam punidos.

O atentado ao Riocentro, ocorrido depois da anistia, escancarou de vez esse poder. O Exército chegou ao ponto de destituir da relatoria do inquérito policial-militar um coronel que queria apurar os fatos; em seu lugar, colocou o coronel Job Lorena de Sant'Anna que apresentou uma conclusão vergonhosa, recompensada com a patente de general. Sobrevivente do atentado terrorista que tentou provocar, o capitão Wilson Machado chegou a coronel - recebe salário de general.

O uso recorrente do cachimbo golpista e a certeza da impunidade foram ingredientes decisivos para a tentativa de virada de mesa entre 2022 e 2023. Dessa vez, porém, a Polícia Federal, o Ministério Público e a Justiça não vão deixar de cumprir suas obrigações constitucionais.

A questão é muito maior do que punir Bolsonaro e seus aliados, o que está em jogo é a possibilidade de, enfim, o Brasil entender que precisa agir como adulto, deixar de correr para quartéis como criancinhas que buscam o pai na hora em que sentem medo.

É preciso acabar com o comportamento infantil de adultos que não conseguem se ver capazes de cuidar dos próprios destinos, que protagonizaram cenas patéticas como as de orações em frente a quartéis. Eles  que busquem ajuda profissional para tratar essa fixação em uniformes e tratem de nos deixar em paz.