Ao levar para a rua o enredo sobre a presença da cultura banto — ou bantu — no Rio, a Mangueira reforça o conceito de escola de samba, lugar de aprendizado, de troca e difusão cultural, de diversão, de culto ao passado que se projeta no presente e no futuro.
Essa perspectiva pode ser conferida no "Manifesto o Rio é banto", documentário de 28 minutos, disponível no Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=0HiMMiFFORQ), uma coleção de depoimentos que, às vésperas do Carnaval, esquenta tamborins, cuícas e almas.
Uma das entrevistadas, Dona Gilda, presidenta da Velha Guarda da Estação Primeira, ressalta que, na escola formal, nunca estudara sobre o povo banto, predominante entre os negros escravizados trazidos da África para o Rio — o conhecimento lhe chegou por outra escola, a de samba.
Desenvolvido pelo carnavalesco Sidnei França, a partir de trabalhos do professor Julio César Medeiros da Silva Pereira, o enredo faz com que Mangueira volte os olhos para uma história que a história oficial quase não conta, como destacou o samba campeão de 2019: "As escolas de samba contam a história verdadeira", frisa Dona Gilda.
Ex-passista e atual diretora de Barracão, Tânia Bisteka conta a surpresa de descobrir a contribuição dos bantos para a culinária e para a cultura brasileira, como o quiabo e a cuíca, "essas coisas que a gente acha que são corriqueiras, e não são corriqueiras".
Historiador e pesquisador, Luiz Antônio Simas ressalta que o enredo preenche uma lacuna ao tratar de um tema que, apesar de tão presente no Rio, nunca foi tratado de maneira mais profunda pelas escolas de samba. Chega a falar que havia um "paradoxo" na ausência de algo tão marcante.
Os depoimentos frisam temas essenciais para o universo da cultura brasileira, em especial, a de origem africana. Questões relacionadas à ancestralidade — como a presença de famílias que estão há gerações no morro —, ao território, à religiosidade e à festa. Elementos que são mostrados como partes de um mesmo todo, não há separações, uma das grandes sacadas do enredo é mostrar o quanto de junto e misturado há na presença banto no Rio.
Um dos depoimentos mais emocionantes é o do bailarino Flavio Lopes, que integra a comissão de frente. Ele conta o impacto que sentiu no ensaio técnico, quando o personagem que encarnava — Ganga, ligado à cultura banto — renasceu, diante da cabine dos jurados, num menino, um cria de Mangueira. Diz que chorou muito ao perceber que, naquele momento, ele interpretava quem ele é. "Eu era o personagem", destaca.
O desfile da Mangueira promete ser uma leitura de sua própria história a partir de um dado fundamental, mas esquecido pelo tempo, a origem étnica-cultural daqueles que construíram o maior patrimônio brasileiro.
Mais uma vez, uma escola de samba dá lições à escola formal que, nos últimos anos, aos poucos, passou a incorporar e reelaborar o que por tanto tempo foi discriminado. Um fenômeno relacionado à maior presença de negros nas universidades.
Ressaltar a cultura banto é uma forma de aprender a ler pra ensinar tantos camaradas, como na música de José Carlos Capinam e Roberto Mendes. Voz do gueto, dona das multidões, a Mangueira vem aí.