Por: Fernando Molica

A covardia e a violência que vêm da desumanização

O longa de Walter Salles despertou o interesse em 'Ainda Estou Aqui', livro de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o filme | Foto: Divulgação

A agressão ao escritor Marcelo Rubens Paiva, um cadeirante, mostra que o extremismo no Brasil adotou algo típico de regimes totalitários — a desumanização de qualquer pessoa identificada com determinados grupos sociais, no caso, com a esquerda.

Foi a desqualificação de judeus — e de poloneses, socialistas, ciganos, homossexuais, eslavos, pessoas com deficiência física ou mental — que viabilizou o Holocausto.

De acordo com os nazistas, alemães não deveriam se horrorizar com a perseguição e a matança de tantas pessoas já que as vítimas. propagavam, não seriam tão humanas quanto eles. Milhões de cidadãos acreditaram nesse absurdo; muita gente, hoje, ecoa esse tipo de fala. Os 20% dos votos recebidos pela extrema direita alemã indicam que o imigrante de hoje é o judeu de ontem.

Na tarde de segunda-feira — quando escrevo este artigo — ainda não foi divulgada a identidade do agressor de Marcelo: quem é, como se define ideologicamente. Seria, portanto, precipitado e até injusto dizer que o covarde era um bolsonarista inconformado pelo fato de Marcelo ser uma pessoa que se coloca à esquerda, um escritor de sucesso, filho de um ex-deputado federal sequestrado, torturado, morto e desaparecido pela ditadura (chega a ser inacreditável associar essas características da vítima para tentar explicar a agressão).

Mas é inegável que Jair Bolsonaro e muitos de seus entusiastas levaram ao extremo o ódio ao diferente, a todo aquele que não vê o mundo pela ótica que consideram a única correta. Isso marca toda a vida daquele que, em 2018, seria eleito presidente da República: ironizou e desresepeitou mulheres, negros e parentes de desaparecidos políticos, exaltou torturadores, pregou assassinato de um presidente da República, e, num palanque, propôs o "fuzilamento da petralhada".

Por fazer o que pregou seu líder, o ex-policial penal Jorge José da Rocha Guaranho foi condenado a 20 anos de prisão — assassinou o petista Marcelo Arruda. Já o barbeiro Paulo Sérgio Ferreira de Santana recebeu pena de 22 anos e um mês pela morte do mestre de capoeira Romualdo Rosário da Costa, conhecido como Moa do Katendê (este, em 2018, dissera que não gostava de Bolsonaro). 

A extrema direita reciclada, que demonstra força em diversos lugares do mundo, tratou de incorporar ao pensamento político uma lógica religiosa típica de religiões monoteístas e autoritárias. Assim, o divergente passa a ser considerado um pecador, um infiel, uma ameaça à própria humanidade.

Ao atacarem terreiros religiões matriz africana ou mesmo igrejas católicas, evangélicos radicais atuam movidos pelo preconceito, mas também pela certeza de que a violência é também uma forma de salvação. Seria assim preciso queimar o que consideram o mal.

Diferentemente do que pregam tantos bolsonaristas, portar um exemplar da Bíblia na mão não indica obrigatoriamente algo que amenize a culpa de agressores. A história da humanidade mostra que tantas e tantas vezes religiões e deuses foram usados como pretexto para o exermínio de outras populações — o que houve nas Américas é um exemplo claro disso.

Fé é algo que precisa ser mantido no campo individual, princípios religiosos não podem ser transpostos para o campo da sociedade, nenhuma crença tem o direito de sequer tentar impor suas normas a outras pessoas. Cada cidadão (no limite, cada pagador de impostos) tem o direito de se manifestar e de exercitar sua liberdade de pensamento.

É terrível que ainda hoje muita gente tente justificar o martírio do ex-deputado Rubens Paiva. O que foi feito com ele e com tantos outros vai muito além de ideologias. O Estado não pode aceitar a violência como método político, agressores precisam ser identificados e punidos.