A desproporção entre o número de motocicletas no Rio e sua presença em acidentes de trânsito comprova a existência de outra forma de extermínio de jovens pobres e geralmente negros e renova a escravocracia brasileira.
Os números, fornecidos pelo Corpo de Bombeiros ao jornal O Globo, mostram que motos são 16% dos veículos da cidade, mas estão em 77% das ocorrências que precisaram ser atendidas pela corporação.
Trata-se de um mecanismo cruel de extermínio, em tese baseado numa opção das próprias vítimas — afinal ninguém é obrigado a ser motociclista. Mas as mudanças no mercado de trabalho, a falta de perspectivas de ascensão formal e a valorização de um empreendedorismo envolto num viés religioso de conquista da terra prometida acabam empurrando tanta gente para um trabalho tão arriscado.
Tanto faz que eles morram aos montes ou que sejam vítimas de acidentes, a fila dos que precisam desse trabalho é interminável. Entre 2024 e 2023, as vendas de motos aumentaram 18,6%. Em 2022, foram computadas 12.058 mortes de motociclistas no país, mais de 33 por dia. Em São Paulo, houve, entre 2023 e 2024, aumento de 19,8% no número de vítimas fatais entre eles, 483 óbitos.
Quem dirige ou anda pelas ruas sabe que há muitos motociclistas imprudentes, que fazem manobras irresponsáveis, entram na contramão, circulam por calçadas. É óbvio que esse tipo de comportamento precisa ser reprimido com muita força (a prefeitura do Rio tinha anunciado uma espécie de choque de ordem nesse campo, mas parece que a proposta caiu da moto).
Mas é muito fácil jogar nas costas deles toda a responsabilidade pelos absurdos que cometem no trânsito. Gostamos de receber nossas entregas rapidamente, com nossa comida quentinha. Adoramos taxas de entrega baixas, vibramos quando esse serviço não é cobrado. Somos parceiros da exploração.
É muito fácil falar em livre mercado, em mão invisível que a todos regula, quando se trata de uma atividade tão pulverizada. Já houve um esboço de organização de motoclistas em São Paulo, mas própria ideia de empreendedorismo dificulta qualquer tipo de luta conjunta. Na prática, um disputa entregas com o outro, e um dia parado representa faturamento zero.
A ideia do vencer na vida graças apenas ao esforço individual atrapalha propostas coletivas e de regulamentação, é só lembrar da irritação de motoristas de aplicativos quando o governo sugeriu a criação de normas que incluíam contribuição previdenciária. Isso foi encarado não como uma poupança para o futuro, mas como mais uma interferência do Estado para atrapalhar a vida de quem quer progredir.
O trabalho dos motociclistas/entregadores é quase uma caricatura do processo de busca da exploração perfeita: eles têm que comprar o instrumento de trabalho, bancam o combustível, precisam rodar, rodar e rodar para faturar alguma grana. Quando se acidentam, recorrem aos hospitais públicos e deixam de faturar. Nessa cadeia, nada é cobrado das empresas que usam seus serviços.
Não é simples interromper o processo de exploração; escaldado pela péssima repercussão de medidas como a que afetava o Pix, o governo não quer saber de brigar com o senso comum de exaltação ao liberalismo. Há também muita demanda pelo trabalho desses jovens.
Talvez o único caminho seja aquele que o país sempre evitou: o de gerar melhores condições de vida, de estudo e de trabalho. Mas, ao invés disso, o Brasil insiste em fingir que não vê o problema — eles não ligam pra nós, cantou Michael Jackson no Pelourinho e no Dona Marta. Nós não ligamos pra eles, seria mais honesto dizer.