Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Berlim na batucada

A Melhor Mãe do Mundo | Foto: Divulgação

 

Depois de sua maciça participação em variadas mostras de Roterdã, que fechou suas telas no domingo, o Brasil avança 13 casas no circuito dos grandes festivais internacionais: emplaca 12 filmes e uma série na Berlinale, que começa nesta quinta-feira (13), na Alemanha. Participa até da disputa pelo Urso de Ouro, com "O Último Azul", do pernambucano Gabriel Mascaro, voltando a um terreno de que andava afastado desde 2020, quando concorreu com "Todos os Mortos".

A láurea germânica já ficou com a gente duas vezes: em 1998, foi dada a "Central do Brasil", de Walter Salles (hoje no páreo do Oscar, com "Ainda Estou Aqui"), e, em 2008, o troféu coroou o olhar de "Tropa de Elite", de José Padilha, sobre a PM. Desta vez, como já é tradição no evento, o cinema brasileiro volta a ocupar variadas seções, inclusive a ala de curta-metragem e a seara das séries. A novidade agora é que vai se deparar com um Festival de Berlim reconfigurado em sua direção artística, com novos espaços de projeção e reconexões com as estéticas alemãs.

Não por acaso, um dos diretores mais importantes para o redesenho da produção germânica na conversão do cinema analógico (em película 35mm) para o digital, na década de 1990, Tom Tykwer (nascido em Wuppertal, há 59 anos) é quem vai abrir a programação desta Berlinale. Os cults "Winter Sleepers - Inverno Quente" (1997) e "Corra, Lola, Corra" (indicado ao Leão de Ouro de 1998) fizeram sua fama. O novo exercício de sua autoralidade, "Das Licht" ("The Light" ou "A Luz"), passa hors-concours como atração de abre-alas do festival, apoiado no carisma de seu astro, Lars Eidinger (de "Dying"). No drama filmado por Tykwer, uma família se aboleta num apartamento na capital alemã. Embora as complexidades do dia a dia distanciem seus integrantes, eles vivem em harmonia, até que a enigmática Farrah (vivida por Tala Al-Deen), recém-chegada da Síria, é contratada como governanta. Com ela, o clã chefiado por Milena (Nicolette Krebitz) e Tim (Eidinger) terá novas lições de empatia.

A convocação de "Das Licht" assinala a nova linha curatorial da Berlinale, confiada à americana Tricia Tuttle, que vem do BFI London Film Festival. A gestão anterior, estruturada por Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian, começou em 2020 (pré-pandemia) e terminou no ano passado. O saldo da dupla foi dos mais positivos, pois reaproximou o festival de grifes narrativas há muito afastadas (como Martin Scorsese e Steven Spielberg), reconectando relações com Hollywood, estremecidas na fase final da administração de Dieter Kosslick, seu curador de 2001 a 2019.

Ao ser empossada, Tricia criou uma seção nova (Perspectivas, dedicada a estreantes) e escalou o divo estadunidense dos filmes indie Todd Haynes (realizador de "Carol" e "Segredos de um Escândalo") para presidir o júri. Ele vai avaliar as produções em competição ao lado de três cineastas (a alemã Maria Schrader, que também é atriz; o marroquino Nabil Ayouch; e o argentino Rodrigo Moreno); uma figurinista (Bina Daigeler, egressa de Munique); uma crítica de cinema (Amy Nicholson, do "Los Angeles Times"); e da estrela chinesa Fan Bingbing.

De cara, Tricia marcou dois golaços em prol da vinculação da Berlinale com a cultura pop. Seu primeiro acerto foi assegurar uma sessão de gala do aguardado "Um Completo Desconhecido" ("A Complete Unknown"), a cinebiografia do cantor, compositor e prêmio Nobel Bob Dylan, dirigida por James Mangold. Estrelado por Timothée Chalamet, o longa foi indicado a oito Oscars. O segundo (e, possivelmente, maior) acerto da curadora foi agitar uma sessão de "Mickey 17", ficção científica que marca o regresso do oscarizado realizador de "Parasita" (2019), o sul-coreano Bong Joon Ho, à direção, após um hiato de seis anos. Robert Pattinson, o atual Batman, estará em Berlim para promover essa sci-fi com jeitão de blockbuster. Pattinson vive o funcionário de uma expedição colonizadora a um planeta distante que é substituído por clones de si mesmo sempre que se desgasta.

Atenta às lutas por equidade de gênero, Tricia escolheu a atriz escocesa Tilda Swinton (de "O Quarto Ao Lado") para receber o Urso de Ouro Honorário, na cerimônia de abertura, no dia 13. A outra honraria anual da maratona cinéfila, a Berlinale Camera, fica com o diretor artístico da Deutsche Kinemathek, o pesquisador Rainer Rother.

Em meio a esses tributos, medalhões vão desfilar pelas telas do Berlinale Palast, em disputa por troféus, entre os quais o onipresente sul-coreano Hong Sangsoo (com "What Does that Nature Say to You"). Vão estar lá o americano Richard Linklater (com "Blue Moon", que tem Ethan Hawke e Margaret Qualley em cena); a francesa Lucile Had€ihalilovic (com "La Tour de Glace", estrelado por Marion Cotillard); e o mexicano Michel Franco (com "Dreams", que tem a oscarizada Jessica Chastain no elenco). Um dos competidores mais badalados desta edição (de n° 75) é o romeno Radu Jude, ganhador do Urso dourado de 2021 por "Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental". Ele compete agora com "Kontinental '25", produzido pela RT Features de Rodrigo Teixeira, do já citado fenômeno de bilheteria "Ainda Estou Aqui". Mascaro, no certame com "O Último Azul", também entra em campo cheio de prestígio. Papou o Prêmio do Júri dos Horizontes de Veneza, há dez anos, com "Boi Neon" (melhor filme no Festival do Rio de 2015) e já esteve na Berlinale antes com "Divino Amor", em 2019.

Desta vez, ele vai se embrenhar pelas paisagens da Amazônia. Denise Weinberg e Rodrigo Santoro integram o elenco de "O Último Azul". No enredo dessa distopia, o governo brasileiro passa a transferir idosos para uma colônia habitacional para "desfrutarem" seus últimos anos de vida em isolamento. Antes de seu exílio compulsório, Tereza, uma mulher de 77 anos (vivida por Denise), embarca em uma jornada para realizar seu último desejo.

"A seleção de 'O Último Azul' para a competição principal de Berlim só reforça o quanto o Brasil é capaz de produzir um cinema forte, profundo e competitivo", diz o ator Rodrigo Santoro, no release oficial do longa de Mascaro. "É emocionante ver o cinema independente chegando tão longe, feito com garra e talento - muitas vezes, com muito pouco".

Na seara hors-concours da Berlinale, a paulista Anna Muylaert volta ao festival dez anos depois de ter exibido "Que Horas Ela Volta" (2015) por lá. Voltou lá em 2016 para lançar "Mãe Só Há Uma". Retorna desta vez com "A Melhor Mãe Do Mundo". Com ecos de "A Vida É Bela" (1998), a trama é protagonizada por Gal (Shirley Cruz), uma catadora de materiais recicláveis que luta para escapar da violência do marido Leandro, (Seu Jorge). No empenho para fugir dele, ela coloca seus filhos pequenos em sua carroça e atravessa a cidade de São Paulo. Pelo caminho, enfrenta os perigos das ruas enquanto tenta convencer as crianças, Rihanna e Benin, de que estão vivendo uma aventura em família.

A presença nacional em Berlim este ano estende-se com a participação dos filmes "Hora do Recreio", de Lucia Murat; "A Natureza das Coisas Invisíveis", de Rafaela Camelo; "Ato Noturno", de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon; "Zizi (Ou Oração Da Jaca Fabulosa)", de Felipe M. Bragança; "Cartas do Absurdo", de Gabraz Sanna; "Arame Farpado", de Gustavo de Carvalho; "Entardecer En América", de Matías Rojas Valencia; e "Anba dlo", de Luiza Calagian e Rosa Caldeira. Passa lá ainda uma prévia da série "De Menor", de Caru Alves de Souza. Cult dos anos 1970, a coprodução germânica "Iracema, Uma Transa Amazônica" (1975), com Paulo César Peréio (1940-2024) na estrada, sob a direção de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, terá sua cópia restaurada exibida no festival, na seção Forum Expanded. Na comemoração do aniversário do Forum berlinense, "Muito Romântico" (2016), de Melissa Dullius e Gustavo Jahn, terá novas exibições.

Na ala de mercado do festival (Berlinale Series Market), duas outras séries brasileiras vão buscar holofotes (e fãs):

"Reencarne", com a marca autoral do cineasta Bruno Safadi, e "Máscaras de Oxigênio (Não) Cairão Automaticamente", que tem Carol Minêm e Marcelo Gomes na direção.

Em 2024, a paulista Juliana Rojas saiu da Berlinale com o prêmio de Melhor Direção da mostra Encontros por "Cidade; Campo", oxigenando o histórico de sucesso do Brasil na Berlinale, que encerra suas atividades no dia 23.

 

Concorrentes ao Urso de Ouro

"Ari", de Léonor Serraille (França)

"Blue Moon", de Richard Linklater (EUA)

"La Cache", de Lionel Baier (Suíça)

"Dreams", de Michel Franco (México)

"Dreams (Sex Love)", de Dag Johan Haugerud (Noruega)

"What Does that Nature Say to You", de Hong Sangsoo (Coreia do Sul)

"Hot Milk", de Rebecca Lenkiewicz (Reino Unido)

"If I Had Legs I'd Kick You", de Mary Bronstein (EUA)

"Kontinental '25", de Radu Jude (Romênia)

"El Mensaje", de Iván Fund (Argentina)

"Mother's Baby", de Johanna Moder (Áustria)

"Reflet Dans Un Diamant Mort", de Hélène Cattet e Bruno Forzani (Bélgica)

"Living the Land", de Huo Meng (China)

"Timestamp", de Kateryna Gornostai (Ucrânia)

"La Tour de Glace", de Lucile Had€ihalilovic (França)

"O Último Azul", de Gabriel Mascaro (Brasil)

"What Marielle Knows", de Frédéric Hambalek (Alemanha)

"Girls on Wire", de Vivian Qu (China)

"Yunan", de Ameer Fakher Eldin (Alemanha)