Por: Affonso Nunes

A inquietude que se fez música

Professor de violão de Marina Baggio, Cézar Mendes é um dos alicerces da arquitetura musical de 'Kissila', álbum de estreia da multi-artista baiana | Foto: Autoretrato por Marina Baggio

Marina Baggio é uma artista inquieta. Pensadora, artista plástica, cineasta, fotógrafa, designer, cantora e compositora, ela transita por múltiplas linguagens em uma investigação estética que batizou de "Bahia Oriental". E chega à cena musical com "Kissila", um trabalho musical de estreia referendado por padrinhos de peso.

Nascida em 1996, marina passou a infância em Salvador, cercada pelo mar, ouriços, coqueiros e bananeiras, elementos que marcam sua produção em pintura e fotografia. Aos 16 anos, mudou-se para a China para trabalhar como modelo e, desde então, tornou-se cidadã do mundo.

Sua trajetória artística percorreu diversos países, com exposições, instalações e pinturas em diferentes espaços. Em 2023, realizou sua primeira mostra individual em Lisboa. A dramaturga Manuela Dias descreve sua arte com precisão: "Marina desenha como se fosse a maré enchendo. Toca violão e canta como quem faz silêncio e sorri. Quando filma, gera imagens que nos mostram o mundo como a gente queria que ele fosse".

De volta ao Brasil, abriu seu próprio ateliê, onde uma geladeira azul dos anos 50, sem motor, guarda papéis, tintas e materiais que alimentam seu processo criativo. Foi nesse ambiente que abraçou definitivamente a música.

"Kissila" foi lançado semana passada pelo selo Atabaque. Produzido por Dadi (ex-A Cor do Som e Barão Vermelho), o disco reúne nove faixas, sendo oito autorais e um dueto especial com Roberto Mendes, violonista de renome e um dos mais celebrados compositores dos dias de hoje. A sonoridade sofisticada e singular celebra a riqueza da música brasileira, construída por um time de mestres: o já citado Cézar Mendes, Chico Brown, Marcelo Costa e Tomás Improta, músicos que imprimem autenticidade a cada nota. A fusão de influências e ritmos faz de "Kissila" uma obra que equilibra tradição e contemporaneidade.

"O álbum é uma colagem de linguagens e sonoridades, um reflexo da liberdade criativa e do poder dos encontros", define Marina. Vem acompanhado de um filme que reúne clipes para todas as músicas e leva o mesmo nome do disco, funcionando como um autorretrato construído ao longo dos anos dentro de suas criações visuais. A incursão na música é uma novidade que se encaixa natural e organicamente em sua trajetória de experimentação artística.

A faixa-título surgiu de um encontro inesperado. "Nasceu em Salvador há anos", conta Marina. "Eu devia estar com a adrenalina alta ainda de um assalto na noite anterior para ter a ousadia de convidar Caetano Veloso a escutar uma composição minha. Cantei para ele, que foi generoso ao me ouvir e perguntar se eu tocava violão. Contei que ainda tocava mal, que havia comprado um para praticar, mas os ladrões levaram. Ele perguntou o nome da canção. 'Kissila', respondi. Caetano ficou em silêncio por um momento e disse: 'Kissila é tipo beije her'. Não entendi nada. Ele repetiu: 'Kis-si-la. Bei-je-her'. E lógico que era".

Marina reconhece a influência e o aprendizado com seus mestres. "Quando Caetano me perguntou se eu tocava violão, nem nos melhores sonhos imaginei que anos depois aprenderia com Cézar Mendes, o melhor professor e amigo que a vida poderia me dar". A relação com os Mendes se aprofundou. Roberto Mendes, um dos maiores compositores santo-amarenses, presenteou Marina com "Gestos", única canção do álbum que ela não compôs. "Criei uma relação de família com Cezinha, o que trouxe também Roberto para minha vida. Sempre que o visitamos em Santo Amaro, fico encantada com suas histórias e canções. Um dia, conversando de manhã cedo, brinquei: 'E a nossa?'. Roberto desligou e, minutos depois, recebi a gravação de 'Gestos'. Me tremi toda. Nem acreditei no que estava acontecendo".

Além dessas faixas, "Kissila" traz "Agora Só Penso em Você" (Marina Baggio, Cézar Mendes e Chico Brown), a bossa nova "Delícia Demais" (Marina Baggio e Cézar Mendes), com o assobio de Cézar, o samba cadenciado "Chave de Cadeia", recheado de violões, baixo, bandolins, teclados e guitarras de Dadi, e "Sujeita à Cobrança", um blues com arranjo e piano de Tomás Improta. Há ainda "Não Aperte Minha Mente", que traz as percussões iluminadas de Marcelo Costa, "Jailbreak", versão em inglês de "Chave de Cadeia", e "Vinheita", instrumental em que Chico Brown traduz pelas guitarras o refrão de "Agora Só Penso em Você", brincando com o som das palavras para transformar uma vinheta em "vinheita".

A estreia em disco é, ao mesmo tempo, um novo começo e a continuidade natural de sua trajetória artística, marcada pela inquietação e pelo desejo de explorar as múltiplas possibilidades da expressão.