Por: Affonso Nunes

Salve o Almirante Negro!

Em 'Turmalina 18-50', João Cândido rememora o levante de 1910 que culminou no fim dos castigos físicos impostos pela Marinha aos militares negros. Os líderes do movimento pagaram um preço alto por sua luta | Foto: Stephany Brito/Divulgação

A Cia. Cerne retorna ao Rio de Janeiro com apresentações gratuitas de "Turmalina 18-50", peça que resgata a trajetória de João Cândido, o Almirante Negro imortalizado na canção "Mestre Sala dos Mares". O espetáculo, indicado ao Prêmio Shell em 2022, tem dramaturgia e direção de Vinícius Baião, pesquisa de Luiz Antonio Simas e conta com as atuações de Diogo Nunes, Gabriela Estolano, Graciana Valladares, Higor Nery, Leandro Fazolla e Madson Vilela. A temporada acontece de 20 a 23 de março no Teatro Ipanema, seguindo depois para arenas culturais nas zonas Norte e Oeste da cidade.

Sob a supervisão de Rodrigo França, a montagem destaca a relação de João Cândido com a água e os caminhos que marcaram sua vida. O título da peça faz referência ao endereço onde o líder da Revolta da Chibata viveu seus últimos anos, na Baixada Fluminense. A narrativa constrói paralelos entre a Marinha, a pesca, os portos e a devoção a São João Batista, reforçando a identidade e o simbolismo presentes na história do marinheiro.

Com patrocínio da Prefeitura do Rio de Janeiro, via edital Foca, "Turmalina 18-50" expõe os abusos sofridos pelos marinheiros negros no início do século XX e a luta contra o esquecimento histórico da Revolta da Chibata. O espetáculo revisita os últimos dias de João Cândido, figura fundamental na resistência contra o racismo institucional, que terminou seus dias em meio à pobreza e ao descaso do Estado.

Gaúcho de Encruzilhada do Sul, João Cândido Felisberto (1880-1969) ingressou na Marinha aos 13 anos, permanecando na instriutuição por 15 anos e sendo açoitado em pelo menos nove ocasiões e preso em solitária a pão e água, conforme documentos oficiais da força naval. O uso da chibata era forma de punição na Marinha, uma prática usada no período da escravidão e que se seguiu mesmo após a Abolição em 1888.

Embora tenham conseguido o fim dos castigos físicos na instituição, muitos dos líderes do movimento foram perseguidos, presos ou expulsos. João Cândido foi preso e colocado em uma cela insalubre, onde vários companheiros morreram. Após ser absolvido em um julgamento militar, foi expulso da Marinha e viveu o resto da vida na pobreza, trabalhando como pescador e estivador. Seu reconhecimento oficial só veio décadas depois.

Outros marinheiros envolvidos no levante foram deportados para colônias penais, como a de Clevelândia, no Amapá, onde muitos morreram devido às condições brutais de trabalho e doenças. Alguns conseguiram escapar ou se reinserir anonimamente na sociedade, mas sem qualquer reparação ou reconhecimento.

A Revolta da Chibata foi um marco na luta contra o racismo e a opressão no Brasil, mas seus líderes pagaram um preço alto pela resistência.

A tentativa de excluir esse personagem da história oficial foi tanta que a própria canção que João Bosco e Aldir Blanc fizeram em sua lembrança foi censurada e os versos "salve o almirante negro / que tem por monumento / as pedras pisadas noi cais" por "salve o navegante negro / que tem por monumento / as pedras pisadas noi cais". Mesmo assim, tornou-se símbolo vivo da resistência e inspiração para gerações que lutam por igualdade racial no Brasil.

Fundada em 2013 na Baixada Fluminense, a Cia. Cerne se consolidou como uma das principais companhias teatrais do Rio de Janeiro. Com circulação por dez estados e presença em diversos festivais, a companhia acumula mais de 60 prêmios, incluindo o Prêmio Shell pela dramaturgia de "Três Irmãos" e o Prêmio CBTIJ por adaptações de clássicos infantojuvenis.

SERVIÇO

TURMALINA 18-50

Teatro Ipanema (Rua Prudente de Morais, 824 - Ipanema)

De 20 a 23/3, quinta a sábado (20h) e domingo (19h)

Entrada franca